ASFALTO, ESTILHAÇOS E VIDAS
ZILMAR WOLNEY AIRES FILHO*
24/05/2009
Agora, acelera-se o ritmo e cria-se o medo da desaceleração súbita, como se através deste ato, fosse estourar o cérebro, ou perder o embalo, no vuco-vuco da usina da vida.
Ao chegar o fim-de-semana, espera-se o merecido descanso. Mas, hodiernamente, o ser humano, na hora sexta, se sente inútil, querendo fazer alguma coisa, como se tivesse peso de consciência pelo relaxamento. Por isso, inventa-se uma atividade, cria-se uma ocupação. Depois, busca o alívio, jogando fora, algumas horas, nas pusilânimes veias internet, em nome da aquisição do tudo, que é nada ou quase nada, daqui a pouco, em virtude do pouco, ou quase nada se reter, pela leitura ultra-dinâmica, que se realiza nestes sítios do mundo. Após, insiste-se em atingir o nirvana. Ergue-se as pernas e atira-se sandálias e sapatos ao espaço, em busca dos céus do descanso e relaxamento. Veste-se camisetas surradas, bermudas confortáveis, e entre almofadas, tapetes, sofás e pipocas, busca-se enganar o relógio da vida, no tic-tac das horas, ruminadas pelas imagens de TV.
Depois de tudo, tem-se a necessidade de sentir o bafejo da vida. Quando, de longe, se vê o asfalto, que continua quente, sujo, como incorrigível guardião das minhas íntimas imprudências, imperícias e negligências. Nele, os estilhaços de vidros e carenagens vão sendo levados por outros veículos, na ciranda do trânsito. Detritos menores de peles e órgãos são triturados, empastelados pelos trilhos de pneus, de outros tantos carros, motos, carroças, até que a enxurrada, bastarda da chuva, lave e leve tudo ao fundo do esgoto. Assim é o asfalto e a vida.
Logo, logo, o asfalto estará limpo novamente, pelas vassouras do trânsito. Talvez, restarão algumas notações sanguíneas e sulcos, deixados pelas frenagens ou carenagens. Mas, o carrossel de humanos, em seguida, esquecerá, que, ali, gente, pássaros, bichos, enfim, vidas, foram subitamente açoitadas, transportadas a novos planos, pelo sopro divino. Uma cruz metálica, entrelaçada por ramos plásticos, exaltando um projeto de flores, amanhã, noticiará aos curiosos, que ali houve um sinistro. E a certeza que, no calendário humano, velas se acenderão, exaltando o de cujus, em dia de finados. Sem embargo, é claro, de papéis, fotografias periciais, escândalos da mídia, que exporão o espetáculo morte, na trágica comédia humana, numa exibição única, para não contrariar a memória fulgaz dos humanos.
O asfalto segue, o corpo tomba. Feridas, crateras, no chão preto, serão recompostas. A borra do piche é remédio para o asfalto, que cura sua própria pele, mas não cicatriza mortes, feridas, acidentes, dos que vão e vêem, no pó da avenida, no embalo da BR, na curva com despenhadeiro, e, na pista sem sinalização, emborrachada e escorregadia, que edifica a viagem sem volta.
O asfalto às vezes se esfria na chuva, no silêncio da madrugada, e nos desvios do trânsito. Rodas e bafejos de fumaças não lhe atormentam tanto, para, que, na noite, possa recompor-se, se possível for, a sua pele, que continua resistindo, sem louros e mérito, além, muito além, do tecido humano, que ironicamente continua construindo o asfalto.
* ZILMAR WOLNEY AIRES FILHO - Advogado e Professor Universitário