A IRONIA DISCRETA DAS ROMÂNTICAS CARROÇAS

 

ZILMAR WOLNEY AIRES FILHO*

 

20/06/2009

    

 

                        O País rechaçou as românticas carroças, quando ainda o verbo sarcástico do Presidente exorcizador de marajás ressoava no planalto central. Agora, as avenidas estão cheias de buzinaços, de pilotos provincianos deslumbrados com seus novíssimos, metálicos ou platinados, veículos.

                        O eterno sonho de consumo da classe operária culminou com o oba-oba do carro próprio, todavia, ironizado pelas românticas carroças, que exaltam ausência de financiamentos e garantia de propriedade, e por isso, altaneiras, disputam, palmo a palmo, uma fatia do asfalto para trafegar sonhos e ilusões.

                        O frenesi toma corpo dos consumidores, ante os anúncios espetaculares, com inúmeras facilidades e sem prévias exigências. Por isso, o humano, pretenso motorizado, sequer lê ou discute, apenas adere às cláusulas de um contrato, comumente recheado de notas de rodapé minúsculas, que irão edificar o calvário de dívidas, para toda uma família.

                        Ora, o ouro de tolo se implementa, sim, através das exigências mínimas e facilidades exuberantes, tal seja: apenas um contracheque de ínfimo salário e endereço certo para posterior busca e apreensão do veículo, bem assim para intimação do futuro devedor insolvente junto aos serviços de proteção ao crédito: SPC, CERASA, etc.

                        Num primeiro momento, o novel adquirente do veículo assimila da seguinte forma: amanhã, tudo se resolve, na Justiça, pois o que vale é o sonho de ter desfilado de caro zero quilômetro. No entanto, o que não imaginam os deslumbrados emergentes, da classe operária, erigidos pela busca frenética do carro novo, que os boletos de 64, 72 ou 84 parcelas, significava o pagamento de, no mínimo, 03 vezes do valor do veículo, inviabilizando definitivamente o seu orçamento familiar.

                        Ademais, se numa soberba manhã de segunda-feira, o sonho se acabar, com a busca e apreensão do veículo, em virtude do atraso de uma parcela, não sofram tudo, pois há também outras questões complexas, que serão conseqüências, como a prisão civil, pela caracterização de depositário infiel, em virtude da depredação ou sumiço do famigerado veículo.

                        Todos podem, e devem buscar a realização de seus sonhos, possíveis e até impossíveis. Os sonhos impulsionam ao progresso. Outrossim, ações e condutas impensadas ou mal planejadas podem, certamente, trazer a efêmera felicidade, seguida, de uma longa e desastrosa estação de incertezas financeiras.

                        Ninguém é obrigado a consumir tudo que a mídia massifica, como ideal para a subsistência e felicidade do ser humano. Às vezes, necessitamos bem menos que inúmeros carnês e prestações, e muito mais de uma boa noite de sono, sem uma alvorada, arrebentada pelos gritos de cobradores em nossos portões. Por isso, a expressão: dívidas, não nego, pago quando  as puder, tem muito mais epigrama que lógica de vida, pois só funciona, de vez em quando, para as castas ruralistas do país, que as renegocia, a cada geração, por mais 20 anos. Ademais, a classe trabalhadora, mitigada de privilégios, não tenham dúvida, paga dívidas, juros diários exorbitantes e sofre busca e apreensão.

                        Carroças ou não, os jeeps, a velha rural, dentre outros, e até mesmo a estrela fusca estiveram em películas de Hollywood, como a trilha: Se meu fusca falasse (herbie rides again, 1964), comovendo àquele outro Presidente do topete resgatá-los. Cabe refletir que rebentos surgiram do amasso no interior destes veículos, que vincularam a história e por isso não podem ser apenas assessórios descartáveis, mas parte integrante de uma família, para não cair no esquecimento como meros alojamentos de poeira em museus, sucatas ou ferros velhos.

                        Ao final, insta salientar que reflexão é o que mais cabe neste território árido de certezas, todavia saturado de impulsos vaidosos e consumistas. Talvez, por isso, de vez em quando, observa-se pelas ruas as velhas carroças: Jeep, C-10, Rural, Fuscas e outros, que transportam histórias, sonhos, ilusões. Que desafiam o trânsito das capitais, bem assim das cidades do interior, silenciando os prateados carros novos, com apenas um slogan, em seus pára-choques, que ensina e silencia, sem qualquer agressão: É VELHO, É MEU; E ESTÁ QUITADO!

                               * ZILMAR WOLNEY AIRES FILHO - Advogado e Professor Universitário

 

 

       

Sair