REGIME DE BENS: INCOERÊNCIAS E LIBERDADE DE MODIFICAÇÃO

 

ZILMAR WOLNEY AIRES FILHO*

 

30/10/2009

 

 

               Quando nubentes ou companheiros resolvem estreitar os laços da união afetiva, logo em seguida, buscam acautelar os bens pessoais, bem assim aqueles que serão adquiridos na constância do convívio marital, sem embargo daqueles advindos anteriormente ao convívio, através de doações, heranças, etc. Por isso, estipulam, em documento público ou particular, o regime de bens que irá vigorar, no casamento ou união estável, protegendo os seus interesses e o da prole, oriunda daí.

               O novo Código civil de 2002 trouxe, em seu bojo, quatro modalidades de regimes de bens, tais sejam: regime da comunhão universal, que era utilizado comumente por nossos avós. Regime da comunhão parcial, que é considerado o regime legal, no silêncio da partes. Regime da separação total, tido por obrigatório, para determinadas circunstâncias, como nubentes maiores de 60 anos; pessoas casadas, com suprimento judicial, e viúvos, que ainda não fizeram a partilha do casamento anterior. E, por fim, trouxe, de forma inovadora, o regime da participação final nos aquestos, que veio substituir o antigo regime dotal, constante do Código Civil de 1916.

               Neste contexto, vale lembrar ainda, que através da ficção doutriná-ria, as partes têm utilizado do regime da separação convencional, sem prejuízo daquilo que o próprio Código Civil já prevê, que é a adoção mista de regimes, pelas partes, desde que não conflitem com os regramentos existentes para os demais regimes de bem.

               A grande inovação, neste particular, tem sido o regime da participação final nos aquestos, onde se verifica que o propósito do Legislador seria contemplar famílias, na condição de verdadeiras empresas, onde marido e mulher, com trabalho e rendimentos próprios, utilizariam um contador, a fim de apurar seus gastos, lucros e rendimentos pessoais, na comunhão matrimonial, e, no final, fazerem uma compensação. Ou seja, este regime híbrido ou misto, que se inicia no regime da separação total, e desemboca no regime da comunhão parcial, pouco tem sido utilizado pelos casais, pela impraticidade de controle e divisão patrimonial. Pois, que no dia-a-dia do casamento, deve-ser-ia fazer balancetes diários, levantando o patrimônio de cada cônjuge, analisando aquisições, doações e perdas existentes, no período de convivência, para, em seguida, ser feita uma compensação e, por derradeiro, a divisão dos aquestos. 

               Todavia, merece lembrar, que uma das inovações do atual Código Civil diz respeito à possibilidade dos cônjuges, em comum acordo, e sem causar prejuízos para terceiros, modificarem o regime inicial de bens, para modalidade diversa. Isso, tanto em relação aos casamentos realizados antes do novo Código, como aqueles à partir desse.

               Tormentosa discussão, nesta seara, diz respeito à Sumula 377 do STF, que permite aos casais, no regime da separação total de bens, que os aquestos, ou seja, os bens adquiridos, de forma onerosa, na constância do casamento, por esforço comum dos cônjuges, sejam divididos. Lembra o doutrinador, Pablo Stolzie Gagliano, que não se trata, na realidade, de uma cópia do regime de comunhão parcial, que possui peculiaridades próprias, bem diferentes do regime da separação total. Contudo, vê na decisão da Corte Suprema, a intenção de proteger os cônjuges, naquilo que constitui fruto do labor de ambos, durante o convívio.

               Noutra parte, assevera ainda o professor Pablo Stolzie Gagliano sobre a incoerência do regime obrigatório da separação de bens, em relação às pessoas maiores de 60 anos. Ressalta que é como se tais criaturas não pudessem mais decidir sobre os seus patrimônios, ou como se fossem ser vítimas do golpe do baú, ao se casarem com pessoas mais jovens, desprovidas de bens, sendo apenas aqueles, os portadores de considerável patrimônio. Lembra o Autor, que trata, na realidade, de uma discriminação indisfarçável a uma pessoa lúcida, que construiu o seu patrimônio, e agora, não poderá gastá-lo, com quem, ou da forma que melhor lhe aprouver. 

                Aliás, neste particular, caso os familiares, pretensos herdeiros, porventura, estejam temerosos em serem prejudicados na herança, no tocante à legítima hereditária, deverão se acautelar, através do instrumento próprio da ação de interdição, a fim de evitar a dissipação do patrimônio, com fundamento na prodigalidade, sendo o caso.  

               Da mesma forma, merece observar que o casamento de pessoas, que têm que se louvar do suprimento de idade, quando uma, ou ambas ainda não atingiram a idade núbil, ou seja 16 anos, a lei impõe o regime da separação obrigatória de bens. Como se tal imperativo fosse sanar a conduta desonrosa de alguém, que está casando, na condição de grávida, ou, na pior das hipóteses, viesse amenizar as dores da vítima de um estupro. Sem contar, que na maioria dos casos, merece refletir que a nubente foi capaz de decidir pela escolha do parceiro, para a prática sexual. Além disso, num mundo atual tão rico de informações, principalmente, neste particular.

                É claro que, na vertente em discussão, existem as exceções, todavia, são raras. Mas, ainda merece lembrar que o inciso VII, do art. 107, do CP, já foi revogado e, portanto, o casamento não constitui mais caso de exclusão da pena, nos casos de crime dessa natureza. Mais que tudo isso, insta salientar que, inicialmente, os tutores ou pais, conhecem a situação, in locu, e o magistrado, também, terá a discricionariedade para suprir, ou não, a idade núbil. 

               Outra questão extremamente controvertida, na doutrina e jurisprudência pátrias, tem sido acerca dos aquestos e aprestos, ou seja, respectivamente, os bens adquiridos antes ou na constância do casamento, de forma onerosa ou gratuita, com trabalho ou não dos cônjuges. Por isso, há tantas divergências acerca da comunicação dos bens, no contexto da partilha e herança dos cônjuges.

               Ao se analisar o velho regime da comunhão universal, muito utilizado por nossos avós e pais, via-se, que nesse, todos os bens adquiridos antes, ou na constância do casamento, de forma onerosa ou gratuita, pelos cônjuges, se comunicavam. Outrossim, após isso, o regime legal, passou a ser o da comunhão parcial, onde apenas os aquestos, ou seja, os bens adquiridos na constância do casamento, de forma onerosa, e por esforço comum dos cônjuges, seriam partilhados.

               Na discussão posta, ainda merece lembrar os bens que não se comunicam, através do regime da separação total, muito embora a súmula 377 do STF, em pleno vigor, e com aplicação recente pelo STJ, determine que, neste regime, os bens adquiridos, por esforço comum dos cônjuges, de forma onerosa, e na constância do casamento, deverão ser partilhados. Talvez, por isso, e para evitar tanta discussão, já se tenha criado, através da doutrina o regime da separação convencional, ou parcial de bens, onde apenas determinados bens, a escolha dos cônjuges, se comunicarão, na constância do casamento.

               Em se tratando da comunicação de bens, de acordo com o regime e na constância do casamento, muito se discute, até onde as verbas salariais, como soldos, montepios, aposentadorias, salários, rescisões trabalhistas, FGTS, aviso prévio, 13º salário, férias vencidas e proporcionais, poderiam se comunicar, na medida em que possuem caráter personalíssimo. A doutrina majoritária pugna pela incomunicabilidade, todavia, ressalta que os bens adquiridos com esses valores, todavia, se comunicam, de acordo com o regime de bens.

               Da mesma forma, os bens de uso pessoal e profissional, como roupas, livros, aparelhos e instrumentos profissionais, apesar das discussões, a corrente majoritária entende não ser o caso de comunicação, dado o caráter personalíssimo. Apesar dos rendimentos oriundos daí, quando empregados na aquisição de bens do casal, referido patrimônio se comunicaria, salvo a aquisição de novos bens, também de caráter personalíssimo, onde teríamos a sub-rogação. Mas, deve-se lembrar que os bens adquiridos, de forma ilícita pelo cônjuge, em favor do casal, implicariam na responsabilidade do outro cônjuge, quanto ao seu patrimônio, ainda que não tenha praticado o ilícito, mas dele, tirado proveito.

               No que diz respeito aos ganhos extras, imprevistos, em virtudes de ações judiciais, ajuizadas antes do casamento, e que ainda não tinham sido decididas, os valores oriundos daí, como aqueles advindos de prêmios de jogos, ou sorteios de loteria, também, não se comunicam, dado as suas qualidades personalíssimas. Ademais, cabe lembrar que os bens adquiridos, na constância do casamento, através desses valores, comunicarão, de acordo com o regime de bens.

               Outra questão curiosa, neste particular, diz respeito às doações, que por regra, e de acordo com o regime de bens, não se comunicam. Todavia, poderão comunicar, quando a doação é feita, em conjunto, ou seja, para ambos os cônjuges ou companheiros, a um tempo só. É bom lembrar, ainda, nesta vertente, que o regime de bens dos companheiros, na constância da união estável, por regra, é do comunhão parcial de bens, salvo estipulação em contrário.

               Ao final, vê-se que o casamento é a formalização do contrato mais solene, constante da Legislação civilista. Todavia, exsurge de um momento, onde se esperava culminar os reflexos de todas as afeições, adquiridas num período de convívio afetivo ou namoro. Outrossim, o Legislador consciente que paixões, vem e voltam, sem a menor interven-ção da vontade, resolveu, através dos regimes de bens, estipular as regras da divisão patrimonial, não só para acautelar interesses dos cônjuges, mas até mesmo da prole e demais sucessores, em relação a esses. A cantiga de roda, da infância, já advertia: “o anel que tu me destes era de vidro e se quebrou; o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.” E, Saint-Exupéry, arremata, com muita propriedade, nas lições do Pequeno Príncipe, desde 1943: “tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas e cativou.”             

                       

* Zilmar Wolney Aires Filho. É professor pós-graduado em Direito Processual Civil. Integra o quadro docente da UniEVANGÉLICA em Anápolis-GO.

 

       

Sair