COISAS DE ASSOMBRAÇÃO
Liberato Póvoa
20/12/2006
Se existe uma coisa em que o sertão é pródigo é de causos de assombração. Aí na cidade grande é assunto vasqueiro, e existe gente que até nem acredita em aleivosia. Mas aqui, no entremeio de qualquer conversa, sempre existe alguém que conta uma passagem, seja acontecida com ele próprio, seja na conta do ouvir dizer.
Ainda esturdia, estava numa roda de conversa, noitinha, quando me lembrei de um causo que teria acontecido com Messias, que foi vaqueiro de meu sogro, mas eu tinha muita cegueira de ouvi-lo da própria boca do Messias, que é tido como destemeroso, não dando ouvidos para medo de coisas do além. Até já me dissera ele que uma noite dera "carona" para uma visagem, na garupa de sua mula. Carona forçada, mas nem por isso ele passou pra lista dos assombrados com defunto. Pois ele estava ali, e futuquei-o sobre o causo que o sertão todo conhece. E ele contou, baforando um cigarro lavado que fiz questão de dar-lhe para deixá-lo mais à vontade. Conversa do povo: um bicho tocaiara-o na aguada do brejo que marca a chegada da fazenda. E ele não relutou em contar o seguinte:
"Lá pra cinqüenta e tantos, ele mais Dominguinha, sua mulher, estavam ali no Engenho, fazenda de meu sogro, numa empreita de curral. O vaqueiro era Adelino.
Muita caça, Messias costumava esperar catingueiro nos pés de embiruçu, e, sem pólvora branca pra cartucheira, assuntou com o velho Josias vaqueiro na Avenida, o qual se prontificou a fornecer-lhe um tanto lá no fim da semana, contanto que ele - Messias - fosse buscar.
Como a precisão é mãe dei pressa, no primeiro sábado Messias arreou um cavalinho preto marchador que ele tinha e tocou pra Avenida, a coisa de três léguas paridas, de tarde cedo, mas teve que esperar o velho Josias voltar do campo, o que aconteceu à tardinha. Lá mesmo, ele carregou os cartuchos e panhou estrada de volta.
Na volta, passou pelo Carrinho, onde, já noitinha, o povo se preparava pra ir ao terço da velha Ana Viúva, que rezava S. Sebastião a um quarto dali, na Fazenda Pouso Alegre, do lado de lá do S. Pedro.
Proseou um bando com o povo, bebeu café, pitou o palheiro e, lá pelas nove horas, desimpediu o povo pra ir à reza e o cavalinho preto sacudiu os cascos no rumo do Engenho, que fica a légua e meia do Carrinho. Quando ia passando no corgo João de Oliveira, sentiu uma puxada no chapéu, e, instintivamente, consertou-o. Ao chegar ao porteirão do fecho do Engenho, novo puxão. E antes de descer do cavalo pra abrir a porteira, o chapéu de couro, misteriosamente, já havia sido puxado várias vezes, tanto que, no amontar, ele já deixou o chapéu calçando a perna na sela. Aí, ele sentiu um arrepiozinho quando botava o chapéu na cabeça, parecendo que este estava flutuando; também os cabelos do braço pareciam mais um luís-cacheiro, mas medo - dizendo Messias - nem um pingo.
Mas o negócio encrespou quando ele saltou a aguada do brejo a tarefa e meia da casa da fazenda: ao confrontar o pé de tarumã (que até hoje está lá), ele divulgou uma espécie de bola que saiu do pasto ali ao lado e, vindo por cima da cerca, caiu-lhe justamente na frente. E no cair - dizendo Messias - já não era mais uma bola, assumindo forma de porco, ora de cachorro em pé nas duas patas traseiras, e o certo é que, porco ou cachorro, o bicho estava avançando era nele, que, sem tempo pra desapear do cavalo, ainda deu três tiros de cartucheira, mas quando deu fé estava no chão, e a arma lhe caíra das mãos. Diz ele que não se lembra de ter caído do cavalo, pois era duro de escancha, mas o cavalo tinha sovertido no mundo.
No chão, seu único arrimo era a peixeira, que o instinto de sobrevivência fê-lo pegar, para tentar livrar-se daquele medonho não-sei-que-diga. E o bicho em cima. E ele, peixeira em punho, se defendendo como podia: esfaqueava em cima, o bicho parece que encolhia e vinha-lhe nas pernas; esfaqueava em baixo, pinicando o chão com a faca, e o bicho já estava em cima de novo.
Lá uma hora, sentiu que a faca pegou. Aí, o misterioso ser se desmanchou numa fumaça, que foi desvanecendo-se até sumir. Mas medo Messias disse que não teve um trisco. Com o pé localizou na erscuridão a cartucheira e pegou.
Ao chegar à porta da fazenda, o cavalo estava remoendo no cocho e ele bateu à porta. Quando Dominguinha abriu e veio com uma candeia, Messias assombrou-se, vendo - dizendo ele - o tal bicho avançando-lhe em riba o resto da noite. E no dia seguinte, foi mais Adelino assuntar o local: o que havia de tampo de capim no chão era demais, e ainda retiraram as balas enterradas dos três tiros que dera. Ele não se lembra de ter reparado algum rastro."
E Messias disse que ainda tem coisa pra contar. Só espero que não sejam causos como os de João Caroço e Felipe Tampa, que mentiam tanto e tinham histórias tão estapafúrdias, que o povo os carregava pra tudo que é canto, onde os sustentava, só no afinco de ouvir os episódios que botavam no chinelo até mesmo o Barão de Münchausen.
Mas até prova em contrário, Messias é gente séria.