Liberato Póvoa
28/04/2007
Lá pelas bandas do Engenho, fazenda de meu ex-sogro onde passava alguns dias em julho, descansando, num lugar dito Verdadeiro pra uns e Furnas pra outros, morava um senhor de Ezique, gente de lá mesmo, nascida e criada ali e com cujos familiares mantenho a mais perfeita avença. E o tal Ezique - que não conheço, mas não refugo um encontro a qualquer hora - dizem que sabe cruzar os pauzinhos numa inhaca tocada pelo feitiço.
Desde muitos anos, mercê de morar em Belo Horizonte, eu não tinha notícia de gente mandraqueira, desconsertadeira da vida alheia. Sempre existiu feitiço, sempre existiu inhaqueiro pelo sertão, mas no mais das vezes gente anônima, pois o bote fatal é sempre dado no escondido.
Os desmanchadores de feitiço - estes, sim! - sempre foram declarados, como um famosíssimo Joaquim Paraguaio, que assistia perto da Cabeceira Verde, a três léguas do Engenho, onde era o império da velha Maria Segurada, que benzeu e curou meio mundo até morrer há coisa de quase vinte anos, se muito. Paraguaio morreu há mais de cinqüenta anos, após desenlinhar a vida de um bando de gente e deixar um rastro de lenda em torno de seu nome.
Morto Joaquim Paraguaio, meio-índio-meio-gente, restou o velho Severiano, morador na beira do Itaboca, o qual, apesar da idade, com seus quase oitentanos bebia sua pinga farta e operava seus prodígios. Muitos anos atrás, no afinco de conhecer o velho, encasquetei-me: botei o carro na estrada, contornei tocos, vadeei grotas e encafinfei sertão adentro mais de sessenta quilômetros e acabei foi passando a noite no casebre miserável do lengendárío preto, que me contou passagens de sua vida e me prometeu "fechar o corpo" numa próxima ida. Mas o velho Severiano, o "escravo do Divino", é assunto para daqui a uns dias, que uma hora destas tratarei dele.
Contava-me meu sogro que existia por lá um outro curador por nome Albertino, que estva dando trabalho pros botadores de feitiço, pois o homem parece que de fato tinha força.
Surgido há muito tempo, passei a conhecê-lo (tanto que fui seu advogado numa pendenga na Justiça por conta de curandeirismo), Albertino até que não tinha conquistado a confiança do povo, que, embora crédulo ao extremo, sempre vê essas novidades com um pé na frente e outro atrás. A resolução de um caso surgido - e tido por inexplicável - é que deixou o povo besta, de queixo caído e beiços afastados.
Assuntem só.
Morava na Barra Nova meu amigo Rafael Cardoso, conhecido de Deus e o mundo, pois nasceu, cresceu, viveu e ainda vive lá, com sua familiazinha de dezesseis filhos (vivos, forante os que Deus carregou antes do prazo). Dentre esses filhos, Santo Cardoso, casado com Tina, mulata até bem-aparecida, morava ali nas rodeanças.
Tão bem apessoada, pro gosto do sertanejo, Tina, sertaneja de ombrear a enxada e fazer limpa de roça de mantimento no rabo da ferramenta, logo despertou a cobiça do Ezique, um camarada comum. E o xamego de Ezique foi crescendo pra riba da mulher de Santo, que, inocente, não via nas intenções gulosas nada de estranho.
Mas como Santo era muito caseiro, pacato e dificilmente saía de casa, Ezique não achava brecha pra ir ali pertinho, no mesmo Verdadeiro, para onde se mudara Santo, puxado pelo sogro, o velho Eliziário, também sogro de Ezique.
Santo, inocente: Ezique, de olho comprido pra cima de Tina, mulher de Santo, cunhado dele-Ezique.
Passado algum tempo, Santo pispiou a sentir-se perrengue, com umas macacoas sem fundamento, e não houve gente que desse volta na misteriosa doença. Na verdade, nem ele mesmo lhe sabia a origem.
Com a imobilidade de Santo - que ficou sem jogo no corpo, grudado na cama -, o esperto Ezique viu-se com a corda toda para cortejar a mulher do concunhado, agora inválido.
Logo, o sertão inteiro encheu-se da notícia da doença de Santo, que sempre fora homem disposto e trabalhador, admirando como quebrara de carnes a ponto de fazer suas precisões levado por mãos dos outros. E talvez continuasse inocente do que ocorria entre sua mulher e o casanova sertanejo, o qual - dizendo o povo - já estava com ela alceada; em outras palavras: tinha-lhe tomado a mulher.
Como quem está perdido não carece escolher estrada, da legião de palpiteiros veio um conselho:
- Lev'ele lá no Albertino!
Ora, qualquer fiapo de esperança servia numa agonia daquelas, e os próprios familiares de Santo carregaram-no para o homem ver.
Malmente Albertino, assessorado pelos seus espíritos, benzeu Santo Cardoso uma vez, que tudo sumiu, e Santo voltou com as próprias pernas, após ouvir o sentencioso Albertino dizer:
- Fizeram feitiço pra matar você e tomar sua mulher!
Nem carecia esmiuçar, pois na boca do povo já corria o xamego de Ezique e Tina.
Ao voltar, Santo até quis matar a mulher, que fugiu pra casa do pai, com quem passou a viver, não sei se até hoje, pois mulher é uma nação de gente que costuma voltar com a mesma constância.
Por sua parte, Santo não quis - nem era besta de querer - confusão com Ezique, pois - sabe-se lá se seu concunhado não tinha outro feitiço engatilhado como defesa?