Liberato Póvoa
20/05/2007
Criado nos padrões inflexíveis de meu avó, meu pai herdara muita coisa: desde o gostar das coisas certas, até a maneira jocosa de contar casos, enfeitando-os com gestos e expressões cheias de graça, improvisadas de acordo como as circunstâncias encomendavam.
Os conhecidos passavam o tempo sentados no balcão da "Casa Póvoa", conversando e rindo das tiradas gracistas que, no meio de um bate-papo, enchiam a loja de gaitadas.
Raro freguês saía dali sem levar pelo menos uma agulha ou um metro de sutache, mesmo os desconhecidos, pois se procuravam um pedaço de madrasto pra camisa, já lhes era sugerido levar a linha, os botões, o forro, a mescla pra calça, o chapéu de palha ou de massa pra completar o vestuário, sem se falar nas alpercatas arreadas, que iriam deixar o freguês todo lorde. Tudo isto ele ia vendendo, enquanto entremeava anedotas e troças que fazia qualquer um descrer que atrás daquela cara risonha e franca se escondesse um severo pai de família, acordador às quatro da madrugada e inflexível na criação dos filhos. O freguês, desprevenido, ia comprando sem sentir o impacto da conta.
Um dia, chega-lhe ao balcão da lojona um tropeiro desconhecido, dizendo ele vir dos gerais do Jalapão vender sua carga de couro de veado e amarrados de penas de ema. Com o dinheiro apurado, o homem ia comprar um bando de coisas em diversas lojas, mas na "Loja Póvoa" só ia ser coisinha à-toa.
O tropeiro foi recebido com um largo é convidativo sorriso e meu pai - que puxava de uma perna, por conta da grangrena que quase lhe roera um quarto - desdobrou-se num ir e vir para atender o freguês, que não sabia dizer "não".
Uma hora depois, chega o homem, contrariadíssimo, à "Casa Ponto Certo", de meu irmão Nélio, que, cheio de astúcias e herdeiro por excelência das presepadas de meu pai, foi logo colocando-se à disposição do tropeiro; este, contrastando com a cara aberta de Nélio, entrou carrancudo, e foi logo justificando quando ouviu o tradicional "às ordens".
- Bem que as pricisão é muita, meu sinhô!
- Isto é bom, porque é sinal que vai comprar de acordo com elas! - pilheriou Nélio, que, dentre nós doze, foi o que mais puxou ao velho, e levava a vida comendo mudubim e contando lérias enquanto atendia a freguesia na loja. Não perdia a oportunidade de relembrar um caso engraçado ou uma ocasião de fazer os outros de besta para provocar risos. Tudo ensejava uma léria qualquer.
E foi esse personagem que presenciou as rebarbas da raiva que meu pai, inadvertidamente, causara no iracundo tropeiro do Jalapão.
- Mas o senhor não vai levar nada? - perguntou Nélio.
- Bem qu'eu pricisava uns butão de "nalho", nanuscada, linha de "nalha", tempero...
- Então, por que não leva, homem de Deus? Tenho tudo aqui...
- Inté qu'eu tinha uns cobre, mas o diabo dum véio aculá em tomô tudim!
- Tomou, como? - Nélio espantou-se, pois roubo era raro ali.
- Entrei naquela lojona - e apontou a direção com o cabo da chibata - mode comprá umas burundanguinha de nada, e o disgraçado do véio ia contano uns causo de ri e vendeno outras coisas. Comprei ferramenta, roupa e inté sapatina de muié, e nem muié tenho, seu moço!...
Nélio interessou-se:
- E onde é essa loja?
- É uma lojona grandona na quina daquela rua. O disgraçado do véio com cara de macaco ia contano uns causo, cunversano bestage e tomano os cobre da gente; o miserave ia caxingano lá dentro e voltava c'uma nuvidade pra mode impurrá no égua aqui. Eta véio iscumungado do diabo!
- E o senhor sabe quem é aquele velho? - perguntou Nélio.
- Sei lá de qui zinferno saiu aquele urubu véio caxingó?! - e emendou com outros adjetivos condizentes com a raiva recolhida.
- Pois ele é meu pai... - disse Nélio calmamente, para ver a reação do homem.
O tropeiro raspou a goela desacorçoado, sapateou assim sem jeito e só pôde responder, coçando a cabeça e gaguejando:
- Ancê... ancê sabe qui ele inté que tem umas graça ingraçada?!
Foi a derradeira vez que ele esteve ali.