A CIÊNCIA DE SÉRGIO CANELA

Liberato Póvoa

07/07/2007 

 

Sempre que ia à fazenda "Pintado", meu pai munia-se de todas os remédios necessários para prevenir do impaludismo, pois as enseadas do córrego do mesmo nome são até hoje famosas pela sezão que provocam.  Mas ele próprio sabia serem inúteis o quinino, a aralém e a metoquina, porque seu impaludismo era crônico.  Evitava ir ao Pintado nas épocas chuvosas, pois contava como certo cair de cama, com aquela febrezinha rasteira e intermitente e a vontade de vomitar.

Forçado por um compromisso indelegável e sobretudo inadiável, teve que se arriscar e foi superintender pessoalmente um serviço na fazenda, parece que uma ferra, pra poder dar a sorte pro vaqueiro.

Caiu de cama - já era de se esperar.  Febre intermitente, moleza no corpo e uma vomitadeira que nada lhe parava no estômago: era cair dentro, e ele botava pra fora.  Tomou quinino, sumo de melão-de-são-caetano, e nada de pelo menos paliar a doença até criar forças para atravessar o sertão, subir a serra e alcançar o comércio pra caçar recursos.  Apesar daquela febre teimosa, que não atava nem desatava, e do corpo moído como de quem houvesse levado uma tunda, o que mais o incomodava era o vômito, que fazia o peito dolorido do enorme esforço.

Era vaqueiro o velho Sérgio Canela, que o fora de meu avô desde a passagem da Coluna Prestes por aqui e que gerara unia prole imensa para exercer a vaqueirice, sempre para gente ligada a nossa família.

Contava o povo que o velho Sérgio era tirado a mandraqueiro, rezador em qualquer macacoa, e diziam, até, que cobra que ele saltasse espichava ali mesmo, durinha. Abusão do povo ou não, eu era menino mas ouvi muita gente dar testemunho de verdadeiras as faculdades de "magnestimo" do velho Sérgio, que conheci pessoalmente.

Meu pai, embora profundamente religioso e respeitador da crença alheia, era meio cético com essas coisas de benzeções.  Mas não se opôs a que seu velho e servil vaqueiro, sempre jeitoso e cheio de "inhá sim", benzesse um barbante de algodão e lhe amarrasse ao pescoço, à feição de um colar, com a recomendação de que não o tirasse, pois ali fora amarrado para estancar o vômito.  Dentro daquela filosofia de que "quem está perdido não procura estrada" e como meu pai estava escamado e entregue à moleza de corpo terrível, pouco ligou que lhe amarrasse qualquer coisa no pescoço, que dirá cordão.

Dias depois, já recuperado, creditou a estancação do vômito depois da amarração do cordão a uma coincidência ou mesmo ao efeito de algum dos remédios que vinha tomando, pois ele, sinceramente, não alcançou na ciência do velho Sérgio qualquer indício que levasse à credibilidade de um cético que nem ele.

Acabado o serviço, juntou os trens, escanchou no burro de arreios e veio embora, esquecendo-se da benzeção e do cordão bento, que, talvez por descuido, lhe ficara no pescoço, já encardido de suor e poeira.

Já em casa, uma indisposição causada por alguma coisa mal comida começou a embrulhar-lhe o estômago, com aquela sensação de que o vômito aliviaria de vez.  Mas este não passava na garganta.  Tomou vomitórios, poaia, água morna e até meteu o dedo na goela, mas o bafume no peito continuava agoniando-o, sem conseguir vomitar.

Aí, minha mãe lembrou-se da reza do velho Sérgio no cordão passado no pescoço e sugeriu que retirasse.  Na angústia em que se achava, meu pai daria até um pedaço da alma para sair-se da incômoda situação.  Sentado na beira da cama, com os cotovelos enfincados nos joelhos e a testa apoiada nas mãos, estava completamente entregue.  E com um gesto concordou, sem ao menos levantar-se:

- Se bem não fizer, mal é que não vai fazer, Pode tirar!

Foi o tempo de desatar o nó: o vômito, há muito tempo contido e represado em lenta agonia, saiu em golfadas, que lhe lambuzou as calças, não lhe dando tempo nem de afastar as pernas para vomitar no chão.

Esse foi só um exemplo, que o velho Canela era capaz de muitas coisas inacreditáveis.

Meu pai contava outro causo de um dente cariado que, vez por outra, era excomungado por doer, e, de certa feita, pegou-o desprevenido na fazenda, sem recurso de remédio que desse volta na dor.  E, na servilidade de sempre, veio-lhe o velho vaqueiro adjutorá-lo com suas meizinhas de magnetismo.  Rezou no dente, fez com a ponta da faca um círculo no chão (dizia meu pai que - não sabe se era impressão - parece que no tocar na ferramenta no chão ele sentia responder em redor do dente) e, com um raminho (ou um tição, nem me lembro), rezou, até a dor passar.

Dizia meu pai que daquele dia em diante nunca mais sentiu dor naquele dente.  Morreu com o toquinho do infeliz doedor, que chegou a desmanchar-se, mas, dor mesmo, só a lembrança.

       

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