O ESTOURO DA BOIADA

Liberato Póvoa

16/11/2007

 

Sempre que me dá uma folguinha, pego um daqueles livros antigos que compro no "sebo" (na tentativa inútil de recompor os que tive em criança), e passo horas lendo trechos de antologias, como a "Seleta Literária", de Maximiano Gonçalves, a insuperável "Flor do Lácio", e esqueço o mundo.

Isto não só me permite ler retalhos do que há de melhor, como trazer reminiscências dos tempos ginasianos, quando o severo padre Magalhães nos obrigava a esmiuçar raízes e precisar o étimo das palavras.

Tornou-se célebre, celebérrimo, no meu tempo o trecho "O Estouro da Boiada" que uma antologia estampava em duas versões: a de Euclides da Cunha ("Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso.. .") e a de Rui Barbosa.  Em cima daqueles dois textos o padre Magalhães trabalhava com afinco, comparando estilos, confrontando expressões e fazendo a classe inteira perder a cabeça com uma série de exigências.

Cá comigo, sempre gostei mais de Euclides da Cunha, pois Rui acabava engasgando-me com seu vocabulário erudito demais para nós, ginasianos, e, ainda por cima, socados num sertãozão onde só se lia o que era de escola e raros exemplares do extinto "Ecos do Tocantins", que chegavam por lá mandados por um amigo de meu pai, ali de Porto Nacional.

Mas a imagem do estouro da boiada ficou-me na cabeça.  Eu não podia imaginar que um magote de gado pudesse fazer um estrago daqueles, descrito pelos grandes escritores.

E pude aquilatar, por uma simples amostra, o que uma boiada desgovernada pode ser capaz de obrar.

Foi lá em cinqüenta e tantos - eu devia regular meus doze anos, se muito, e me deu a influência de ir com meu cunhado Moreno e vários peões para o Pintado (fazenda de meu pai, a quinze léguas, no sertão), ajuntar uns bois para vender fiado a um matadouro que se instalara nas imediações do campo de avião.

Mas esta é outra história.

Tudo correu bem, e, apesar de ser um gado meio arisco e esquerdo com curral, formou-se um magote de mais ou menos umas trinta reses, dentre elas uns patueiros renitentes e sacudos acostumados nas capoeiras e enseadas do sertão, onde não havia cercas, e as fazendas limitavam-se por riachos, grotas e pés-de-morro.

Esses bichos, de início, danaram a querer voltar pro seu pasto, até que, enlotados numa maloca com sinueiros mais passivos e conformados, foram tocados estrada afora, no rumo da cidade.

À noite, chegamos ao Jenipapeiro, onde o dono, velho conhecido, cedeu o curral, para sairmos de madrugada, a fim de alcançarmos a Serra do Funil ainda de dia, pois subir aquelas pirambeiras medonhas à noite não era só temerária: era impossível.

Fazendo marcha de apressado, chegamos à serra ainda de sol alto; dava para alcançarmos o plano antes da boca da noite e encurralar o gado em cima, no planalto.

Justino Rocha, vaqueiro do Pintado, com seu vozeirão graúdo, ecoava autoritário na bocaina da serra, tangendo o gado e cuidando que nenhum boi tomasse trieiro diverso.  Eu ia no coice do magote, só mesmo de companheiro, levando atravessada na lua da sela uma pesada capa de mangaba.

Quando os patueiros do sertão desconfiaram que estavam deixando seus pagos, desembestaram pra trás, e não houve remédio que os parasse.  Por um és-não-és, eu seria defunto: o experiente Justino, xingando pra quantos capetas havia no inferno, bradava com o gado passando de fiapo, levando tudo nos peitos e derrubando o cavalo de lado, sob a bruta liderança de um marruá de saco grande, que consumira dois dias de campo na pegação lá no Pintado.

O estralar das tabocas foi diminuindo, até que sentimos que o magote já estava lá muito dentro, esguaritado no mundo.  Só ficaram seis cabeças.

Dali em diante, ao subir qualquer outra serra, eu jamais ficava no coice da boiada.  Felizmente, foi a primeira e a derradeira vez que presenciei um tendepá daquele.

E vi que Rui Barbosa e Euclides da Cunha não exageraram.  E olhe que só eram poucas reses, estourinho à-toa.  Avalie uma boiada inteira!

       

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