Liberato Póvoa
26/07/2008
Hoje, tudo está muito diferente. No mais longínquo povoado, o progresso se encarregou de desmanchar o que havia de característico na pacatez e na indolência do interiorano.
Raras cidadezinhas mantêm o costume - saudoso costume - de, à tardezinha, levar-se uma cadeira para a porta da rua para contemplar o pôr-do-sol ou se reunir com amigos no bate-papo de despedida do dia. Hoje, quem é que tem tempo de abstrair-se um pouco do corre-corre para ficar no sem-que-fazer?
No meu tempo de menino, de manhã e à tarde, essa cena era vista em quase todas as casas: de manhã, para quebrar o friinho matinal nos primeiros raios de sol; à tarde, para descansar as pernas numa espreguiçadeira, enquanto a meninada brincava na praçona (hoje, Praça Liberato Póvoa - que era meu pai).
Cidadezinha sem carros nem movimento, o cavalo e o burro é que eram a valência no transporte de gente, e toda casa que se prezasse deveria ter um moirão fincado na frente; era o "estacionamento". Outras tinha até árvores com fresca sombra: na porta lá de casa, ainda hoje existe uma fila de mungubeiras (aliás, só restam três pés), e o tal progresso se encarregou de arrancar os pés de "ficus" que perlongavam as duas praças, onde se ajuntavam os desocupados para fuxicar a vida alheia ou ver a molecada jogar bola, num "racha" improvisado com bola de mangaba, que bola de borracha ou de couro não eram conhecidos.
Padre, não havia. Só aparecia algum na época da romaria da Sicupira, a seis léguas da rua; em 1952 é que o bispo de Porto Nacional, D. Alano, mandou pra lá, o recém-ordenado padre Magalhães, com ânimo definitivo, que os outros eram andejos e só iam por lá em desobriga.
Polícia, só o cabo Gregório e João Soldado: o cabo ficava mesmo era na rua zanzando pra riba e pra baixo, sem o que fazer, bebendo cachaça, e João Soldado, na mesma tiorega de ocupação, era lavrador e raramente era mobilizado para efetuar uma prisão. A cadeia, no entanto, era pavorosa: não é que houvesse carrascos ou torturadores; o problema é que era tão velha, que um eventual preso temia que lhe caísse em cima, qualquer uma hora. Talvez fosse esta a razão de quase não haver crimes.
Hoje, ninguém mais se senta à porta da rua de tardezinha; não existem mais as brincadeiras de esconder, de linha-de-ferro; não se vê mais menino brincando de "pirim", de "bom barquinho", de gado-de-osso; não se vêem mais os buracos de bola-de-gude, as "barrocas" de pião, os riscos de "finca" na terra úmida; as primeiras chuvas não ensejam mais os passeios pelos morros pedregosos do Barreiro e do Mato Seco atrás de caju; as "paneladas" do Sábado de Aleluia não existem mais; os roubos de galinha na Sexta-Feira Grande acabaram; não se cogita mais dos piqueniques no Saltinho; as lavagens de roupa no Poção, aonde íamos - a família inteira - para banhar-nos no córrego, enquanto as mulheres batiam roupa nas lajes que o margeavam; as caçadas de passarinho no goiabal que já acabou; os jogos de bola "Ginásio x Cidade" de todo domingo no campo velho de bola do pé de tamarindo; os passeios semanais de a pé ao aeroporto para ver o avião, novidade enorme até que nos acostumássemos com aquela verdadeira besta-fera de alumínio; o catecismo com as freiras e com o padre Lazinho para nos assustar com a história de que menino desobediente e que não vai à missa acaba ido pro inferno, onde o fogo queima sem consumir: as sabatinas de tia Diana com a palmatória pronta para corrigir os erros nas tomadas de lição de soletrar e nas contas de dividir por; o medo do "careta" no dia de entrudo, com Bolacha e Demolício vestidos de carocha para vibrar lapadas de taca em nossas pernas secas; o entrudo que aterrorizava os pelintras, quando menino molhava menina e menina molhava menino, sob pena de sermos chamados de "zé-muié" se molhássemos um do mesmo sexo.
Tudo isso acabou.
Acabou porque o progresso chegou, afogando, destruindo aquilo que tanto nos marcou a infância e que hoje permanece apenas com pálidas recordações e enfeites na memória.
Os carros passam levantando poeira; os aviões sobrevoam a cidade soltando decibéis em nossos tímpanos; veio a música "pop"; chegou o minicassete e o computador. E passeia ante os olhos indiferentes da nova geração, que choraria de saudade se tivesse alcançado aqueles belos tempos em que vivíamos, de pés no chão, saltando muros de quintais alheios e vendo novidade em qualquer coisa que aparecia.
Na impossibilidade de reviver o sabor daqueles tempos, quando menino conhecia dinheiro por ouvir dizer que havia, contento-me em fechar os olhos e reviver apenas na memória os belos momentos que se foram. Irreversível e lamentavelmente.