A ONÇA MISTERIOSA
Fazendas
localizadas em terreno de brejo padecem o pesadelo do atoleiro, que engole
reses inteiras, sem que outro remédio exista para impedir os prejuízos,
senão rodear os sumidouros com cerca de arame, que aterrar é impossível.
Como se não bastassem os atoleiros, existe o sucuriú, formidável
réptil que, inobstante não venenoso, mata as rezes por constrição, a
ponto de triturar-lhe os ossos para engoli-las inteiras.
Entretanto,
quer pela facilidade com que se movimenta nas cercanias das serras, pela
esperteza que lhe dificulta a caçada, pela valentia com que recebe os
cachorros numa acuação, matando-os a tapa e às vezes investindo
contra o próprio homem, a onça pintada pontifica entre os maiores pesadelos
das fazendas.
A
caçada de onça - quem afirma é o sertanejo - é extremamente perigosa,
pois, acuada, ela se torna imprevisível: pode ficar remoendo a raiva
manifestada em pavorosos miados ou pode investir contra os onceiros
e, às vezes, contra o caçador. Dizem
os entendidos que não se pode errar o primeiro tiro numa onça acuada,
pois quando a fumaça da pólvora se dissipa, a bichana está em cima.
Existe até o ditado, segundo o qual uma coisa está tão certa
como a onça vem na fumaça.
Casos
de onça e caçadores desenharam histórias e mais histórias no sertão,
onde conheci muita gente que sentiu ao vivo as emoções de uma caçada,
após acuar o terrível felino numa árvore, no topo de uma caleira ou
recanteada numa gruta.
Lendária
se tornou a imensa e misteriosa onça pintada que viveu por muito tempo
nas terras que cercavam a fazenda Jardim, do coronel Abílio Wolney, a
cinco léguas de São José do Duro, cheia de grutas e socavãos muito
propícios à fera. A onça
esturrava à noite, arrepiando de medo os moradores.
Embora monstruosa, capaz
de carregar na cacunda um marruá, a onça do Jardim tinha uma
peculiaridade; só comia animal de montaria.
Não se teve notícia de um só bezerro que tivesse morrido em
suas garras, e o imenso rebanho da considerada a maior fazenda da região
não foi molestado. Em
compensação, dizem que não sobrou nem mesmo um jumento, e de certo época
em diante, o pessoal das redondezas estava andando a pé, por não
ter sobrado um mísero rocinante para se pôr a sela.
Afirmam que raramente a
bichana comia a presa; limitava-se a sangrá-la e abandoná-la exangue,
como se tivesse o sádico prazer de ver o sangue correr. E de tal forma ficou audaciosa a onça, que vinha matar
animais no pátio da fazenda, à plena luz do dia, e às vezes dentro do
curral, encostado à casa, quando sua fúria exterminadora impôs
que à noite se recolhessem os animais às mangas de pasto e aos currais,
para melhor serem vigiados. E
até se registrou o caso de uns tropeiros que acamparam à beira de um
carrego, peando animais de montaria e de carga e colocando-lhes ao pescoço
chocalhos para facilitar a localização de madrugada, na hora de arribar
de novo em viagem. Pela manhã, encontraram todos mortos, sacrificados um por
um pela misteriosa onça. E tão
especialista era, que os tropeiros não escutaram qualquer sintoma de
ataque.
Mandaram
vir caçadores da Bahia, do Piauí e de outros Estados para dar cabo da
pintada, sem resultado; a fama da onça gerou histórias, segundo as quais
ela havia aparecido e conversado com caçadores, dizendo-lhes que era o
espírito do velho coronel Wolney (pai de Abílio, dono da fazenda) e
que estava comendo o que era dela.
O
mito da onça do Jardim, que só foi comparável à celebérrima Mão
Torta, de igual mistério, terminou por acaso, quando um dos moradores
da região (cujo nome não me lembro), andando perto de umas grutas, foi
surpreendido por uma chuva repentina, obrigando-o a refugiar-se numa das
lapas. Passada a chuva, ele
foi saindo, quando reparou duas luzes esverdeadas faiscando em cima do
portal da saída da gruta. Sem
saber o que poderia ser aquele par de luzes, puxou instintivamente o cão
da espingarda e seguiu em frente. Era
a terrível onça que estava de bote pronto para atacar.
Quando menos esperou, o felino já pulava em cima, que nem deu
tempo de ele levar a arma ao ombro, usando-a apenas como proteção.
Com o pulo, a espingarda disparou, e, para sua felicidade, o tiro
atingiu bem entre os olhos da besta-fera, que estrebuchou ali mesmo, em
cima do caçador, que branco que nem cera, ainda ganhou umas lanhadas no
estertor da morte da bicha. E as marcas no seu corpo serviram de prova de valentia,
uma espécie de troféu de guerra.
De
frouxo e medroso, o caçador por acaso entrou no rol dos heróis do Duro.