A ONÇA MISTERIOSA

 

 Liberato Póvoa
liberatopovoa@uol.com.br
 

 

Fazendas localizadas em terreno de brejo padecem o pesadelo do atoleiro, que engole reses inteiras, sem que outro remédio exista para impedir os prejuízos, senão rodear os sumidouros com cerca de arame, que aterrar é impossível.  Como se não bastassem os atoleiros, existe o sucuriú, for­midável réptil que, inobstante não vene­noso, mata as rezes por constrição, a ponto de triturar-lhe os ossos para engoli-las inteiras.

Entretanto, quer pela facilidade com que se movimenta nas cercanias das ser­ras, pela esper­teza que lhe dificulta a caçada, pela valentia com que recebe os ca­chorros numa acuação, matando-os a tapa e às vezes investindo contra o próprio ho­mem, a onça pintada pontifica entre os maiores pesa­delos das fazendas.

A caçada de onça - quem afirma é o sertanejo - é extremamente perigosa, pois, acuada, ela se torna imprevisível: pode ficar remoendo a raiva manifestada em pa­vo­rosos miados ou pode in­vestir contra os onceiros e, às vezes, contra o caçador.  Di­zem os entendidos que não se pode errar o pri­meiro tiro numa onça acuada, pois quando a fumaça da pólvora se dissipa, a bichana está em cima.  Existe até o di­tado, segundo o qual uma coisa está tão certa como a onça vem na fumaça.

Casos de onça e caçadores desenharam histórias e mais histórias no sertão, onde conheci muita gente que sentiu ao vivo as emoções de uma caçada, após acuar o ter­rível felino numa árvore, no topo de uma caleira ou recanteada numa gruta.

Lendária se tornou a imensa e misteriosa onça pintada que viveu por muito tempo nas terras que cercavam a fazenda Jardim, do coronel Abílio Wolney, a cinco léguas de São José do Duro, cheia de grutas e socavãos muito propícios à fera.  A onça esturrava à noite, arrepiando de medo os mora­dores.

Embora monstruosa, capaz de carregar na cacunda um marruá, a onça do Jar­dim tinha uma peculiaridade; só comia animal de montaria.  Não se teve notícia de um só bezerro que tivesse mor­rido em suas garras, e o imenso rebanho da consi­de­rada a maior fazenda da região não foi moles­tado.  Em compensação, dizem que não sobrou nem mesmo um jumento, e de certo época em diante, o pes­soal das re­donde­zas estava andando a pé, por não ter sobrado um mísero rocinante para se pôr a sela.

Afirmam que raramente a bichana comia a presa; limitava-se a sangrá-la e aban­doná-la exan­gue, como se tivesse o sádico prazer de ver o sangue correr.  E de tal forma ficou audaciosa a onça, que vinha matar animais no pátio da fazenda, à plena luz do dia, e às vezes dentro do curral, encos­tado à casa, quando sua fúria ex­termina­dora impôs que à noite se recolhessem os animais às mangas de pasto e aos currais, para melhor serem vigiados.  E até se registrou o caso de uns tropei­ros que acampa­ram à beira de um carrego, peando animais de montaria e de carga e colo­cando-lhes ao pes­coço chocalhos para facilitar a localização de madrugada, na hora de arribar de novo em viagem.  Pela manhã, encontraram todos mortos, sacri­ficados um por um pela misteriosa onça.  E tão especia­lista era, que os tropeiros não escuta­ram qualquer sintoma de ataque.

Mandaram vir caçadores da Bahia, do Piauí e de outros Estados para dar cabo da pintada, sem resultado; a fama da onça gerou histórias, segundo as quais ela ha­via aparecido e conversado com caçadores, dizendo-lhes que era o espírito do velho co­ronel Wolney (pai de Abílio, dono da fa­zenda) e que estava comendo o que era dela.

O mito da onça do Jardim, que só foi comparável à celebérrima Mão Torta, de igual misté­rio, terminou por acaso, quando um dos moradores da região (cujo nome não me lembro), andando perto de umas grutas, foi surpreendido por uma chuva re­pentina, obrigando-o a refugiar-se numa das la­pas.  Passada a chuva, ele foi saindo, quando reparou duas luzes esverdeadas faiscando em cima do portal da saída da gruta.  Sem saber o que poderia ser aquele par de luzes, puxou instinti­vamente o cão da espingarda e seguiu em frente.  Era a terrível onça que estava de bote pronto para atacar.  Quando menos esperou, o felino já pulava em cima, que nem deu tempo de ele levar a arma ao om­bro, usando-a apenas como proteção.  Com o pulo, a espin­garda disparou, e, para sua felicidade, o tiro atingiu bem entre os olhos da besta-fera, que estrebuchou ali mesmo, em cima do caçador, que branco que nem cera, ainda ga­nhou umas lanhadas no estertor da morte da bicha.  E as marcas no seu corpo ser­vi­ram de prova de valentia, uma espécie de troféu de guerra.

De frouxo e medroso, o caçador por acaso entrou no rol dos heróis do Duro.

       

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