Joacy e Buchinho

DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*                                                                                                        

08-12-2009

 

 

Sempre achei que pesca e pescaria são coisas diferentes. Eu sou adepto da segunda. É o ato de reunir os amigos em torno de algum rio ou lago, bebericar, conversar, cozinhar, comer, ouvir música e apreciar a natureza. É claro que o “bebericar” fica mais na vontade do que na prática. Na maioria das vezes bebe-se muito, o que não é bom. E fuma-se também, o que é ainda pior. À parte os excessos, é uma terapia que merece ser repetida quando possível. 

Quase sempre os pescadores ditos profissionais não gostam de amantes da pescaria como eu. Na verdade, para alguns desses sou apenas um estorvo, fora do padrão. Só para se ter uma ideia, nem traia eu levo, como anzol, linha, molinete, iscas, alicates etc. Por tudo isso, gente do meu tipo só participa desses eventos ao lado de amigos tolerantes, aqueles que já estão acostumados com tais esquisitices.

Pescar, ao contrário, é ato de enganação, sedução, um longo diálogo silencioso que se trava com a natureza, numa tentativa de ludibriar peixes. É exercício de paciência e resistência estomacal; é preciso colocar a mão em carnes muitas vezes deterioradas, lidar com tripas e corações, conviver com um tal “minhocoçu”, que mais parece uma cobra e que é enfiado no anzol ainda vivo, e, para os mais afoitos, mergulhar atrás de linhas e anzóis que se prendem no fundo das águas. Em outras palavras – só pra utilizar o linguajar do meio – pescar é coisa de macho; pescaria, de homem. Pescador está mais ligado ao peixe, o objetivo maior. Para amantes da pescaria o ato de pescar é mero detalhe.

Com um grupo de amigos fui a uma ilha cercada pelas águas caudalosas do Tocantins, em Ipueiras, num desses feriados abundantes em nosso Estado. Lá conhecemos o professor Zé Carlos, um sujeito prestativo e disposto que muito nos auxiliou na lida cotidiana. Depois de quase três dias, voltamos para casa a bordo de um barco pequeno, cheio de caixas, colchões, sacos com lixo e bagagem, o que significa dizer que estávamos com excesso de peso.

Dos quatro companheiros, dois são tão experientes nesse tipo de aventura quanto sou em física quântica. O considerado mais preparado e, justamente por isso, piloto do barco, não percebeu que atravessar um rio largo, de fortes correntezas, na diagonal, em meio a um banzeiro e prestes a acabar a gasolina poderia nos levar à morte. Eu, o menos dotado de algum conhecimento digno de nos salvar, só fiquei sabendo do risco que corríamos quando isso já não tinha a menor importância.

Quando Pery já estava na quarta ou quinta “Ave-Maria” surgiram, como quem chega do mundo de Nemo, os dois personagens-título desta crônica. Amparado pela larga experiência e tranqüilidade de quem nasceu em Atlântida, Joacy, o piloto do barco de salvamento, encostou ao nosso lado e ofereceu o seu imprescindível, inestimável e impagável auxílio. Após encostarmos próximos à margem do rio e com o indisfarçável e emocionado sorriso dos que acabam de voltar da terra dos mortos, oferecemos o mínimo que podíamos naquele momento: uma cerveja bem gelada. Eles aceitaram de pronto.

Empenhados em não deixar que aquele exótico grupo se perdesse pelo rio afora, Joacy e Buchinho resolveram nos levar até Ipueiras, afinal sabiam que sem eles nós chegaríamos a lugar nenhum. No trajeto, fui especulando tudo que podia e ouvi do primeiro uma frase que, embora inusitada, contém ao mesmo tempo a praticidade e a simplicidade peculiares aos que vivem naquele habitat: “Prefiro salvar pessoas vivas do quê mortas; estas dão um trabalho danado”. E nos disse que recentemente havia trazido um cadáver em seu barco e o defunto tinha um semblante muito fechado, o que lhe      obrigou a recomendar: “Por favor, melhore essa cara moço!”.

Salvos, felizes e embriagados, por fim chegamos a Ipueiras, bem ali pertinho do bar do Agripino. Como estávamos sob uma chuva torrencial, Viturino sugeriu que esperássemos ela passar para só então descarregarmos a canoa, no que ouviu do Buchinho um ditado que, se não é o mais recomendado do ponto de vista da higiene e da semântica, contém, como todos os outros, um princípio de sabedoria: “O que é um peido pra quem já tá cagado?”.  

Essa frase apenas prenunciava o grande artista que estava ali em nossa frente. Debaixo de protestos os mais veementes por parte dos bondosos homens, pagamos pelo salvamento e os convidamos para um almoço. Entre cervejas e tira-gostos, Buchinho se revelou um exímio contador de piadas e nos fez rir até esquecermos de que àquela altura, sem sua intervenção, não estaríamos ali.

Cláudio deixou escapar uma gargalhada gostosa, daquelas de quem está bem vivo e feliz, quando Buchinho contou que certo pescador, depois de muita sorte em seu ofício, percebeu que sua isca havia acabado. Sem alternativa, tirou a caneta do bolso e escreveu num pedacinho de papel: ISCA. Atirou o anzol na água e logo fisgou um enorme cartaz onde estava escrito: PEIXE.

Nossa empreitada resultou em um único piau de mais ou menos 200 gramas – presente do Viturino para o meu filhão Eduardo, o que, levando-se em conta a despesa da pescaria (R$ 840,00), chega-se à conclusão de que esse é o exemplar mais caro da espécie, custando a bagatela de quatro mil e duzentos reais o quilo.

No final das contas a pesca foi horrível, mas a pescaria inesquecível. Buchinho é tecladista, humorista e pescador. Joacy é amante de pescarias e barcos. Entre uma e outra atividade os dois salvam vidas. Naquele dia as nossas estavam em suas abençoadas mãos...   

                                                    

E-mail: dibeleno@yahoo.com.br

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires  advogado, membro das Academias Palmense, Dianopolina e Tocantinense Maçônica de Letras.  

 

       

Sair

 

 

          http://www.dno.com.br