As mãos
DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*
22-12-2009
Coquelin Leal Costa, o tio Coque, foi um homem com quem tive o privilégio de conviver durante boa parte de minha infância e adolescência, por conta da grande amizade que sempre mantive com seu neto, André – o Deco.
Viveu longamente uma vida cheia de afazeres e responsabilidades. Era magrinho, ativo e ocupado – espécie de cientista autodidata. Em sua pequena oficina, que funcionava na Rua Benedito Póvoa, em Dianópolis, consertava-se de tudo. As donas de casa levavam qualquer utensílio para sua análise minuciosa. De máquina de escrever Olivetti a ferro de passar roupa, para tudo ele tinha a solução. Muitas vezes, mesmo sem conhecer o objeto, descobria como fazê-lo funcionar novamente. Em seu Jippe vinho, mecânico algum colocava a mão. Ele mesmo fazia questão de consertá-lo.
Tio Coque era homem disciplinado e eu adorava ouvir seus conselhos, transmitidos com uma voz mansa, pausada, entremeada por um risinho peculiar. Admirador de Érico Veríssimo, que dizia ser “nosso melhor escritor”, algumas vezes eu levava exemplares do autor para seu deleite. Horas de minha vida passei na varanda da casa da Lapinha, chácara que ele mantinha próximo ao córrego Getúlio, quase no centro da cidade, mas que minhas pernas curtas da infância faziam parecer distante.
Eu era admirador incondicional do tio Coque. Sua inteligência me fascinava; dominava todos os assuntos, ao menos aqueles que faziam parte do universo de minha curiosidade, que sempre foi vasta. Talvez o melhor naquele homem sábio tenha sido sua paciência, a disponibilidade em dar atenção a uma criança que por vezes se mostrava inconveniente. Eu queria saber de todos os detalhes e adorava vê-lo lidar com as ferramentas, muitas das quais confeccionadas à mão, penduradas organizadamente na parede da oficina.
Meu avô materno não existia quando nasci; o paterno morreu quando eu ainda não havia desfrutado bem de sua existência. Tio Coque, durante esse período, substituiu na minha vida a figura do avô. Ele e tia Jaimira formavam o casal exemplar, apaixonados, fato que podia ser notado nos olhares molhados que trocavam, nos gestos de respeito, no carinho e na maestria com que ela fazia biscoitinhos de queijo, os melhores que já comi, servidos numa travessa posta sobre a mesa e degustados com volúpia por mim e Deco – e parcimônia pelo tio Coque.
Eu o achava interessantíssimo. Na hora do almoço – quantas vezes almocei em sua casa – discretamente gostava de vê-lo comer. Ele colocava pouca comida no prato, levava o garfo à boca e mastigava lentamente, durante um longo tempo. Talvez fosse essa a receita de sua saúde de ferro. Enquanto todos já haviam terminado, ele ainda estava lá, degustando bovinamente seu repasto.
Após o almoço, sentava-se no sofá da sala e era justamente nesse momento que eu, espectador de sua vida, me deliciava. O que mais gostava no tio Coque, fisicamente, mais até do que sua cabeça altiva, esférica e calva, eram suas mãos. Nunca as vi tão belas num homem. Enormes como as de gigante, as falanges pareciam nós de cana-caiana, e os polegares, com suas extremidades descomunalmente arredondadas, se destacavam dos demais dedos.
Durante o silêncio que mantinha após o almoço, fechava os olhos e, com os dedos das mãos leptossomáticas entrelaçados, fazia movimentos em círculos com os polegares, deslizando um por sobre o outro, primeiro para frente, depois para trás. Eu imaginava que naqueles momentos seus dedos funcionavam como espécie de ampulheta, marcando o tempo que passava. E eu ali, assistindo a tudo de camarote.
As peças da oficina ficavam miudinhas quando apoiadas entre o polegar e o indicador do tio Coque. Não sei como ele conseguia segurar, com aquelas mãozonas, parafusinhos pequenos e porcas minúsculas. Tenho saudades dele. Até hoje consigo sentir o carinho que me fazia na cabeça de menino, num farfalhar efêmero de cabelos, encobrindo todo meu crânio com as mãos.
Tio Coque morreu faz algum tempo. Viveu muito diante de nossa expectativa de vida, mas pouco para quem o conheceu. Tia Jaimira, qual Julieta, morreu logo depois, de intensa paixão...
Hoje acordei para escrever esta crônica, pois sonhei que dormia sobre a palma gigantesca da mão do tio Coque. De vez em quando, no sonho, ele passava o polegar direito nos meus cabelos, fazendo um cafuné gostoso enquanto deixava escapar o seu sorriso inconfundível. Nós estávamos na varanda da casa da Lapinha... Vou voltar a ler Érico Veríssimo...
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