A mulher e a cruz

DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*                                                                                                        

23/03/2010

  

Três acontecimentos se repetem todos os finais de ano no Brasil: natal, réveillon e tragédia. As casas construídas nas encostas dos morros têm prazo de validade, já que duram até as chuvas torrenciais da temporada. Elas desabam e levam junto muitas vidas, que se perdem embaixo de barro e lama. O problema é conhecido, mas as autoridades nada fazem no sentido de proibir tais construções, oferecendo outras oportunidades de moradia para esses desafortunados.

As televisões se deliciam com as imagens mostradas à exaustão, dia e noite. A tragédia da vez é a de Angra, no Rio de Janeiro. Aumenta-se o número de mortos, estradas são interditadas, pedras rolam morro abaixo, impedem a passagem de veículos e o caos se instala.

É natural que muitos apelem para Deus, nesses momentos de sofrimento. Mas, no caso, o problema está longe de ser divino. Trata-se da simples junção de uma natureza furiosa e um governo incompetente. Ora, se é conhecido o problema, poder-se-ia tomar algumas providências básicas antes do momento fatal. O caso de Angra dos Reis, e tantos outros, são encarados como mera fatalidade, palavra que não sai da boca das autoridades, em tais ocasiões. 

De todas as nossas tragédias de finais de ano, incluindo desabamentos e enchentes, a cena mais marcante foi a daquela mulher que saía de casa agarrada a um enorme crucifixo. Ela estava, literalmente, carregando sua cruz, o único objeto que conseguiu recuperar em meio ao dilúvio. Como disse meu amigo Arpuim, é até irônico imaginar que aquele símbolo cristão, que em tese estava ali justamente para livrar de todos os males as pessoas da casa inundada, tenha sido salvo em vez de salvar.

A mulher que salvou o crucifixo também procurava ser salva por ele. Ambos se agarravam, numa simbiose de crença e desespero. Ela perdeu tudo, menos a fé. O único problema é que lhe falta, agora, uma parede onde pendurar sua cruz.    

Para além das tragédias causadas pela fúria da natureza em conjunto com o descaso dos governos, os infortúnios pessoais são igualmente terríveis. Pessoas pobres e que passam uma vida tentando construir o mínimo, comprar geladeira, fogão, máquina de lavar roupa e outros utensílios, de um dia para o outro se encontram desprovidas de tudo o que conseguiram ao longo da vida, muitas vezes por meio de esforços descomunais.

Quanto a nós, privilegiados que assistimos a tudo esparramados em nossas confortáveis poltronas enquanto degustamos uma guloseima qualquer, nem nos espantamos mais, simplesmente      olhamos a desgraça alheia com certa indiferença, com a arrogância dos que estão longe do inferno.

Não sei aonde anda aquela senhora e provavelmente não ouviremos mais falar nela. Talvez esteja em algum abrigo, ou embaixo de um viaduto. Pode ser que esteja passando fome, ou alguém de bom coração a tenha auxiliado e lhe oferecido um teto. De cá, fico torcendo para que ambos – mulher e crucifixo – encontrem um lugar em que possam estar seguros. Mas algo me diz que ela ainda vai carregar sua cruz por muito tempo.  

                                       

E-mail: dibeleno@yahoo.com.br

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires  advogado, membro das Academias Palmense, Dianopolina e Tocantinense Maçônica de Letras.  

 

       

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