INTOLERÂNCIA
DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*
23/03/2010
Os religiosos costumam ser bastante violentos, intolerantes e ríspidos com ateus, céticos, agnósticos e até mesmo com relação aos crentes que não concordam com sua religião. Há uma “verdade” estabelecida pela sociedade, no sentido de que se deve respeitar qualquer crença, por mais absurda que ela seja. Aliás, a liberdade de crença é um direito constitucionalmente garantido. Contudo, a maioria se esquece que o direito de não-crença também é uma garantia constitucional.
O fato é que, numa discussão, se o sujeito disser que vai para o céu, com uma passagem rápida pelo purgatório, não é de bom tom duvidar. Se ele disser que encontrará após a morte algumas virgens para o seu deleite eterno, também não se pode ser ousado o suficiente para contrapor a tal delírio. De igual forma, se alguém lhe disser que você foi um senador romano em outra encarnação e que agora vive nessa penúria por conta de pecados cometidos em vidas passadas, das quais você sequer se lembra, também terá de engolir calado. Porém, se por acaso você for suficientemente corajoso para afirmar que não acredita em nada disso, o religioso passará a achar que se trata de um imoral, pecaminoso, digno de ser condenado ao ostracismo e ao desdém.
Os cristãos costumam ser bastante contraditórios com a sua própria doutrina, já que o Cristo teria dito para o fiel perdoar, inclusive, os inimigos, ou oferecer os lados da face para o espancamento, além de ter deixado inúmeros exemplos de tolerância. O que mais me estarrece é que a crença dos religiosos, quase sempre, não se apoia em qualquer embasamento sólido. Eles apenas acreditam, sem ao menos se darem o direito de questionar, de se perguntarem qual a razão disso ou daquilo. É claro que se trata de pura lavagem cerebral, sob a qual foram expostos desde a infância e que apelidaram de “fé”. Ensina-se a ter medo de Deus, desse Deus que nos inculcaram e que, segundo a Bíblia, é um senhor cruel, misógino, ciumento e sanguinário.
Mas as pessoas religiosas, em que pesem as evidências da não existência de um Deus, conforme nos explica a Bíblia, continuam acreditando nessa fantasia. Confesso que muitas vezes sinto-me um tanto quanto angustiado com tudo isso, além de ofendido por muitos arrogantes que pensam ser os donos de uma verdade estabelecida e que não comporta qualquer tipo de questionamento. Eles utilizam uma lógica rasteira para defender seus pontos de vista: “Se não se consegue provar que Deus não existe, então é óbvio que ele existe”. Diferentemente, a ciência, de forma muito mais responsável, utiliza o seguinte raciocínio: “Se ainda não se provou que Deus existe, então provavelmente ele não existe”. A ciência não descarta a “possibilidade” da existência de um ser supremo, apenas sustenta, diante dos pueris argumentos religiosos, que sua existência é absolutamente improvável.
Um dos erros que um cético, ateu ou agnóstico não deve cometer é o de tentar dogmatizar suas convicções, sob pena de estar a agir da mesma forma que agem aqueles os quais contesta. É preciso ter cuidado para que o ateísmo não se torne, também, uma religião. É comum ouvir aqui ou ali que, na verdade, os materialistas são religiosos às avessas, apenas com mais racionalidade, já que somente acreditam naquilo que possa ser provado. Os religiosos, os homens de fé, acreditam em algo que não precisa ser explicado. Dizem eles: “Jesus morreu na cruz para nos salvar e pronto!”. Acreditam nisso piamente e não aceitam discussão. É absolutamente natural e racional procurar saber de quê fomos “salvos” e por qual razão Jesus teria feito isso, já que não tem o menor sentido lógico. Esse simples questionamento é visto pelos religiosos como ato de desrespeito, de imoralidade e de extrema manifestação de heresia.
Discordo daqueles que dizem que todo ceticismo é, também, espécie de religião que prega a não-crença. Em primeiro lugar, não se vê nas escolas públicas aulas de ateísmo e agnosticismo, mas de religião sim, cujos professores são pagos com os impostos que saem dos bolsos, inclusive, dos descrentes. Também não se sabe de alguma batalha promovida por uma legião de ateus, tentando provar aos seus inimigos que Deus não existe; ao contrário, são inúmeras as guerras da humanidade, em nome da religião, em que os fiéis tentam impor aos outros a sua crença. Mesmo os imperadores, reis, czares e governantes em geral, os quais se declararam ateus, mataram porque eram assassinos e não para defender uma doutrina ateísta. Os céticos e agnósticos, ao contrário dos religiosos, podem vir a acreditar plenamente numa divindade, desde que tal argumento seja provado de forma irrefutável. Por outro lado, o religioso comum – por mais que a ciência já tenha demonstrado que a história da criação bíblica não passa de fantasia – continua acreditando. Em pleno século XXI, muitos fundamentalistas americanos tentaram e tentam obrigar o ensino do criacionismo nas escolas públicas de seu país, conforme está explícito na Bíblia, sem mudar uma vírgula. E pedem mais: que a teoria da evolução, tão bem defendida por Darwin, seja expurgada dos currículos escolares.
Vivo num grande dilema. Tenho dois filhos pequenos e não disponho de muitas opções no que diz respeito à educação deles. As escolas públicas brasileiras, por enquanto, ainda não são obrigadas a ministrar o ensino religioso, embora muitas assim o façam, mas a qualidade de tal ensino consegue ser ainda pior do que a das escolas particulares. E estas, quase sempre, são dirigidas por entidades religiosas. Não são poucos os colégios católicos e protestantes; até mesmo os que se dizem mais liberais e “não devocionais” acabam por inculcar em seus alunos uma visão religiosa da vida. Raramente se encontra uma escola onde o tema religião, do ponto de vista da doutrinação, seja simplesmente ignorado.
Uma coisa é estudar a história das religiões, afinal isso é fato e faz parte da própria evolução da humanidade, não se podendo ignorar que elas participaram do progresso das civilizações. Não se pode negar, por exemplo, que a Igreja Católica contribuiu sobremaneira no campo das artes, como pintura e música, sem falar na sua enorme importância para as ciências jurídicas. Mas não se deve esquecer que num estudo histórico não seriam excluídos os pontos negativos das religiões, coisa que as escolas cristãs ignoram. Mas isso não tem nada a ver com eu seguir os dogmas do catolicismo. Posso estudar as religiões com um olhar científico e filosófico, sem acreditar que existe um Deus bíblico me esperando depois da morte.
Diante de tudo isso, sinto que terei de submeter meus filhos a essa lavagem cerebral, com a diferença de que eles terão um contraponto em casa. Mostrarei quais as contradições, o que a ciência diz a respeito de tais assuntos e esclarecerei o que, pessoalmente, penso sobre o tema. Quando estiverem maiores, certamente lerão os meus livros e muitos outros, assim como terão a liberdade de ler a Bíblia e qualquer outro livro religioso, assim como eu próprio os li e leio. Se ainda assim preferirem se tornar padres, pastores, rabinos ou simplesmente pessoas religiosas, serão livres para isso e gozarão do meu respeito, mas ao menos terão visto os dois lados da moeda. Serve-me como alento o fato de eu ter sido educado num colégio de freiras espanholas católicas, vítima desse processo de alienação, o que, nem por isso, impediu-me de me desvencilhar dessas amarras.
Vejo cada vez com mais tristeza a impossibilidade de um debate franco, aberto, com respeito e tolerância para se discutir um assunto que simplesmente deveria fazer parte do nosso cotidiano. Encontro diversos empecilhos e, não raro, sou visto pelos religiosos mais fervorosos como um sujeito imoral, que tem a coragem e a desfaçatez de questionar a existência do Deus bíblico. Até de louco já me chamaram. Certa vez organizei uma palestra sobre criacionismo e ciência e ministrei-a apenas para alguns amigos. Todos foram unânimes em afirmar que a forma de abordagem era muitíssimo interessante e senti que havia conseguido incitar, no mínimo, uma reflexão, mas todos fizeram questão de dizer para eu ter o devido cuidado ao sair divulgando “essas coisas” por aí, afinal poderia estar a colocar em risco a minha vida. Veja que é explícita a noção de que os religiosos podem matar quando contrariados, o que demonstra contradição com os próprios princípios que defendem. E o pior é que tal afirmação se justifica, já que a história se encarrega de nos demonstrar, fartamente, que isso por diversas vezes aconteceu e acontece. Nem mesmo em alguns círculos acadêmicos são permitidas tais liberalidades, o que é um absurdo.
E há ainda o argumento de que os céticos são obcecados pelo tema, como se o assunto fosse, mais uma vez, monopólio do clero. Somos todos levados a ouvir, dia e noite, desde a infância, as ladainhas religiosas, coagidos a frequentar igrejas aos domingos, obrigados a suportar padres, pastores e todo tipo de líder religioso, que hoje invadiram as rádios, televisões e até os jornais, numa orgia explícita de enganação e de exploração da boa-fé alheia. Contrapor a isso soa cansativo, incomoda, não faz parte de um comportamento – digamos – aceitável pela sociedade. É como se houvesse um contrato social onde só se pode discutir religião quando os interlocutores possuírem a mesma crença. Fora disso poderão se matar.
Sei que não estou sozinho, mas são poucos os que se juntam para um debate. Muitos se sentem constrangidos e temem expor seu ceticismo. Depois que escrevi LIVROS SANGRENTOS, no qual faço críticas a respeito de alguns livros bíblicos, admito que obtive muito reconhecimento, mas também tive de suportar o afastamento de pessoas antes próximas e que passaram a me olhar com desconfiança. Não que essas reações tenham sido uma surpresa, mas chegou-se ao cúmulo de uma palestra minha sobre o Oriente Médio ter sido vetada pelo Colégio João d’Abreu, em Dianópolis, cidade onde nasci, embora eu tenha estudado naquela escola até entrar na faculdade. O argumento utilizado pela freira-diretora, à época, foi o de que meus posicionamentos são contrários aos interesses da referida Instituição, o que apenas comprova que alguns religiosos não gostam do debate, do livre pensamento e abominam a lucidez (palavra da qual deriva “Lúcifer”, criação bíblica para nomear aquele que representa o mal). Há crentes que transitam mais livremente no arenoso terreno do obscurantismo e da incerteza. Simplesmente não aceitam que alguém possa ter uma visão diferente; que seja possível perceber outro mundo; que a própria vida seja uma dádiva; que não há necessidade de ser religioso para ser bom; que ninguém depende de uma crença estabelecida para ser considerado moral e eticamente respeitável.
Essa gente não consegue entender que é possível viver – e viver bem – sem adorar santos, anjos e deuses imaginários; que não há necessidade de se acreditar na promessa de uma vida após a morte para se continuar vivendo e tendo esperanças. Tudo isso, pensam eles, é monopólio das religiões, embora hipocrisias e violências sejam cometidas quase todos os dias, no mundo todo, por líderes religiosos. Não chego a ser um ateu, no sentido literal da palavra; considero-me agnóstico, aberto às discussões, que apenas exijo, por respeito à minha formação intelectual, que me expliquem e provem as teses religiosas. Insisto em não acreditar perdidamente nas historietas bíblicas, que não passam de fábulas e mitologia. No dia em que me convencerem do contrário, se convencerem, não hesitarei em mudar de ideia. Por enquanto, recuso-me, terminantemente, a simplesmente ter fé – que nada mais é do que crença sem evidência. Ela funciona como espécie de imposição clerical para o homem não pensar; é o sustentáculo das religiões, que enriquecem e adquirem poder levando aos incautos a certeza de que serão recompensados após a morte, embora não lhes ofereçam qualquer garantia. Com medo do desconhecido, o sujeito ajoelha-se e se submete a qualquer coisa que lhe possa arrefecer o pavor que tem do inferno – outra criação estapafúrdia das religiões. Em troca de tudo isso, essa rede concebida para vender ilusões costuma cobrar 10% do faturamento mensal de cada fiel.
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