O flagelo de Karol
DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*
01/04/2010
Recentemente o mundo ficou sabendo que o papa João Paulo II se flagelava. Por incrível que pareça esse argumento foi utilizado por Slawomir Oder, no livro Por que um Santo?, em que defende a canonização do polonês. Não são poucos os religiosos que costumam manter hábitos bastante estranhos. O ato de se esfolar com um chicote é visto como forma de expiar os maiores pecados e evitar os desejos da carne, além de ser encarado como maneira de se aproximar mais do sofrimento que teria vivido Jesus Cristo, quando pregado na cruz.
Quem assistiu ao filme ou leu o livro O Código da Vinci, de Dan Brown, tomou conhecimento de um personagem, membro da Opus Dei, que se flagelava com um cinto de cilício amarrado à perna. O papa, como sabemos, preferia se açoitar.
Quem diria. Aquele olhar inebriante de João Paulo II era, em muito, produto das várias noites que passou se chicoteando e dormindo no chão frio, sangrando-se em nome da paz mundial, em nome da cura do mundo, em nome de não sei quê mais. Sem dúvida, atitude corajosa, desprendida das coisas materiais, a começar pelo próprio corpo, numa demonstração de que relevante é o espírito.
O autor do livro disse: “Tanto em Cracóvia como no Vaticano, Karol Wojtyla se flagelava. Em seu armário, em meio a suas vestimentas, um tipo especial de cinto ficava pendurado num cabide, e ele o usava como açoite”. Muitos religiosos acham natural essa atitude e a veem, inclusive, como digna dos grandes homens, daqueles que se encontram mais próximos do divino.
Comparado a isso, somente aqueles pagadores de promessa, que atravessam centenas de quilômetros sob o sol, e outros que andam ou sobem escadas de joelho, levam pesos enormes na cabeça, caminham sobre brasas e, no ápice do transe, se imolam em praça pública. Não deixa de ser espantoso o fato de o fiel precisar se flagelar para estar mais próximo de um Ser Supremo. O sofrimento é visto como forma de purificação; se Jesus sofreu, eu também devo.
Além do autoflagelo, que é uma modalidade de mortificação (imitação do sofrimento de Cristo), outra prática comum, seguida pelos mais fanáticos e santos, é o asceticismo, que consiste numa filosofia de vida onde o prazer é severamente expurgado. João Paulo II também era adepto dessa categoria de martírio.
Difícil conceber a ideia de que Wojtyla sentisse a necessidade de se flagelar para purificar a alma, um homem que viveu pacífica e amorosamente, detentor de um carisma incrível, tão incrível que às vezes era possível até imaginar que tivesse uma procuração assinada pelo próprio Deus, lhe transmitindo todos os poderes inerentes às questões divinas. O que dizer, então, de Joseph Ratzinger, o Bento XVI? Nem é bom imaginar o que é capaz de fazer com o seu próprio corpo.
Mas nada foi em vão. Paulo II será beatificado e, logo-logo, santificado. Uma freira já se pronunciou ter sido agraciada por um milagre: foi curada inexplicavelmente do Parkinson depois de rezar por Karol. Eu achava que todo papa se tornasse santo imediatamente após a morte, afinal foi nada menos do que o representante de Deus aqui na Terra. Se o detentor de tão alta patente precisa de tanto sofrimento para encontrar o descanso eterno, imagine nós, meros mortais...
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