Dídimo Heleno Póvoa Aires*
07/02/2004
Em
meados de 1991 mudei-me para Goiânia, onde fui fazer cursinho e
aprender biologia, química e física, ciências que na minha cidade
eram ensinadas a toque de caixa, de modo superficial. O esforço valeu a
pena, pois em 1992 ingressei-me
na Faculdade de Direito de Anápolis, formando-me cinco anos depois.
Pois
bem. Nos meses de julho e dezembro, voltava para Dianópolis para passar
as férias na casa dos meus pais e as viagens eram feitas de ônibus.
Viagens que mais adequadamente deveríamos chamar de odisséia. Os veículos
eram péssimos, com a suspensão levantada, daqueles que são adaptados
para as estradas de chão. Sim, porque estrada de asfalto é a coberta
de piche e a de chão é aquela que não é asfaltada. Até hoje não
entendo muito bem porque estrada de asfalto também não pode ser
chamada “de chão”. Deixa pra lá. Voltemos ao que interessa.
Numa
dessas viagens, depois de bem gozados 30 dias de férias, dirigi-me
cedinho rumo à rodoviária para aguardar o “rasga-roupa”, local
onde passaria minhas próximas 17 horas, se tudo corresse dentro dos
conformes. Como fui um dos últimos a entrar, encontrei como companheira
de viagem, sentada elegantemente numa cadeira, minha querida tia Quinô.
Depois de pedir-lhe a bênção, sentei-me e passamos a conversar.
Conversa
vai, conversa vem, eu e tia Quinô travávamos um papo gostoso, cheio de
perguntas de minha parte, especulando tudo que podia. Particularmente,
quando converso com pessoas mais velhas, faço tantas perguntas sobre
“antigamente” que às vezes pareço meio intrometido. Quero saber de
tudo. Um dos meus assuntos prediletos diz respeito ao “Barulho de
19”. Conversar com uma pessoa mais velha, habitante de Dianópolis, e
não fazer a clássica pergunta sobre como foi aquela sangrenta batalha,
é não ter conversado. O Barulho, para quem não sabe, foi o conflito
ocorrido na cidade de Dianópolis, no ano de 1919, entre a então polícia
goiana e alguns parentes meus, retratado no filme O Tronco, baseado no
livro homônimo, de Bernardo Élis. O assunto é tratado, de forma não
fictícia, no livro Quinta-Feira Sangrenta, do professor Osvaldo
Rodrigues Póvoa.
Em
meio à nossa ruidosa conversa sobre o Barulho, percebi que tia Quinô
trazia no assoalho do ônibus, junto aos seus pés, um tesouro:
tratava-se de uma reluzente lata de Neston, a famosa matula. Meus olhos
brilharam e salivas famintas inundaram minha boca sedenta, imaginando o
que se escondia por trás do alumínio daquele vasilhame. Dali em
diante, não consegui mais concentrar-me na conversa. Só tinha olhos
para a lata.
Estudante,
à minha disposição tinha apenas alguns trocados, a quantidade exata
para dois salgados e um refrigerante. Esse seria o meu almoço. Diante
daquela lata de Neston, com seu inconfundível rótulo amarelo,
permiti-me sonhar com a possibilidade de uma refeição mais digna.
Aproximava-se do meio dia e o buzuzão seguia sua viagem entre
solavancos e roncados de estômagos vazios, entre os quais o meu.
Meus
olhos lânguidos de menino pidão tiraram toda a concentração da
conversa. Tia Quinô divagava em suas observações e eu só conseguia
pensar na lata de Neston. Chegamos numa cidade e o ônibus parou. O
motorista avisou que teríamos 30 minutos para o almoço.
Para
minha surpresa, quando descemos do veículo observei que tia Quinô não
havia trazido a lata consigo. O desespero tomou conta de mim. Meu Deus!
Será que terei de enfrentar aqueles malditos salgadinhos? Contive-me.
Teria que imaginar algum plano para conseguir comer a matula da tia Quinô.
Com
a boca seca de fome, perguntei: -
E aí, tia, não vai comer nada? – Não meu “fiim”, pode ficar à
vontade. Quando viajo, fico meio sem fome, com o estômago enjoado. Na
minha idade, é melhor nem comer. Vou tomar só um pouquinho d’água
– respondeu-me.
“Valei-me
meu Pai Eterno” – pensei. Custava a acreditar que uma lata de Neston
tinindo de cheia ficaria ali, no assoalho do ônibus, enquanto eu
comeria um salgadinho de três dias, arriscando mastigar uma barata
acompanhada de um refrigerante quente. Não! Era preciso tomar alguma
providência urgente, pois o tempo dado pelo motorista já estava se
esgotando.
-
Ê, diacho! É o jeito encarar esses salgados – lamentei, jogando um
verde para tia Quinô. Minha tia nada. Nenhuma reação. A fome começava
a deixar-me nervoso, mal-humorado. Mesmo assim, resisti, lutaria até o
fim por aquela lata de Neston, pois julgava-me no direito de degustá-la.
No auge do desespero, quando uma senhora passou por mim empunhando um
pastelão gorduroso, não resisti: - É, até que tô com fome, mas
encarar um pastel desse não dá! Isso arrasa o estômago de qualquer um
– falei de uma maneira que mais parecia uma imploração, apostando
minha última ficha. Tia Quinô comoveu-se e dirigiu, pela primeira vez,
o seu olhar tranqüilo em minha direção. Um raio de esperança cortou
minha alma. Dessa vez teria que dar certo.
Foi
quando ouvi as seguintes palavras mágicas: - Olha, “Didimeleno”, eu
trouxe um frito que tá lá dentro do ônibus, numa lata de Neston. Se
você quiser, pode comer – disse ela. Tenho a impressão de que não
foi possível disfarçar minha reação. Mal a mulher terminou de falar,
eu já estava quase na porta do ônibus. Agarrei a lata como o jogador
agarra o troféu no final de um campeonato conquistado. Pronto.
Finalmente degustaria a desejada matula.
Sentamos,
pedi à dona do bar uma colher e enfiei a ponta do cabo naquela gretinha
entre a tampa e a borda da lata, fazendo um barulhinho característico
provocado pela pressão. Lá de dentro exalou um cheiro inimaginável de
frito de carne de porco com açafrão e pimenta de cheiro. Era o odor do
néctar dos deuses. Comi como um desvairado, entalando e desentalando,
ante os olhares de espanto da tia Quinô. Tomei um copão d’água, dei
um arroto inevitável e seguimos viagem.
No final, ainda ganhei de presente da tia Quinô o frito de carne de porco que sobrou na lata. No outro dia, já em casa, degustei-o com um pouquinho de arroz branco, comendo lentamente, valorizando cada pedaço da carne suína que havia conseguido com tanto sacrifício.