UM RÉU INUSITADO

 

Dídimo Heleno Póvoa Aires*

27/06/2003

 

             Uma agradável cidade aqui do Norte do Tocantins, às margens do belo rio Araguaia, foi palco de uma inusitada história. Alarico  Silva (nome fictício), foi acusado de estupro e alegou, em sua defesa, que apenas tentou fazer com que a vítima lhe desse, de bom grado, o que era oferecido gratuitamente à grande parte da população masculina do lugar. Diante da negativa, o réu apelou para meios menos ortodoxos, para não dizer medievais. Foi preso.

            Na delegacia, o jeito bonachão e simpático de Alarico foi logo percebido por carcereiros e policiais. Não demorou muito, caiu nas graças do delegado. Como era proprietário de uma caminhonete tipo D-20 e diante da carência de automóvel naquela DP, determinou que o carro fosse estacionado ali no pátio da prisão, para ser utilizado em serviços diligenciais e assuntos particulares dos funcionários. O combustível também era pago por ele.

            A essa altura, a popularidade de Alarico atingia picos elevadíssimos no Ibope do cárcere. Nos finais de semana, reunia o pessoal responsável pela sua guarda, agora seus amigos diletos, e os agraciava com um lauto churrasco regado a cerveja. Da euforia etílica que se instalava naqueles momentos, resultava abraços eufóricos e rasgados elogios ao réu, que tanta alegria havia trazido àquele mórbido ambiente. Até mesmo cestas básicas eram distribuídas pelo preso às famílias dos guardas, sem falar no dinheiro que era emprestado para a compra de cigarros e outras miudezas, satisfazendo o vício da rapaziada.

            Os dias iam-se passando e a amizade entre Alarico e seus “algozes” aumentava vertiginosamente. Pela manhã, saía para tomar sol, sempre acompanhado de um guarda amigo, disposto a servi-lo e agradá-lo em todos os caprichos. A atenção do réu era disputada por todos, pois aquele que conseguisse obter sua confiança, poderia beber cerveja de graça e ser presenteado com quantas carteiras de cigarro quisesse.

            Como recompensa, Alarico instalou-se numa cela que em nada lembrava uma prisão. Televisão, lençóis sempre limpos, colchão ortopédico, banheiro com porta (uma regalia), toca-fitas e até mesmo uma penteadeira com espelho, faziam parte da “decoração” do aposento. Os outros detentos não reclamavam da mordomia de Alarico, pois também eram beneficiados com sua benevolência. Certa vez, mandou reformar o prédio da delegacia, que estava caindo aos pedaços.

            De forma inesperada e abrupta, uma triste notícia chegou através da voz embargada do delegado. Alarico havia cumprido sua pena e estava prestes a voltar para casa. Uma indisfarçável tristeza tomou conta daqueles semblantes melancólicos e nem mesmo o réu conseguia esboçar alegria ante a liberdade anunciada.

            Para amenizar a dor da partida, resolveu bancar a última festa, um rega-bofe que aconteceria ali mesmo, na delegacia. Discursos inflamados foram proferidos, juras de amizade eterna foram ouvidas e abraços suados foram trocados. Alarico estava nitidamente emocionado e num acesso incontrolável de choro acabou contagiando todos aqueles marmanjos, que o acompanharam num coro de soluços regado com lágrimas.

 

            No final, um dos guardas pediu a palavra: - “Sei que sentiremos muito a sua falta, meu amigo Alarico. Desde o primeiro dia, você cativou nossos corações, com seu jeitão alegre e brincalhão. Foi você quem nos apoiou nas horas difíceis, ajudando-nos até mesmo com cestas básicas. Não que eu deseje mal a ninguém, mas ficaria muito feliz se você resolvesse procurar outra moça pra comer. Obrigado!”.

 

            Aplausos estalaram no ar, gritos de “fica, fica!” foram ouvidos e o réu, a ponto de explodir de emoção, apenas chorava copiosamente, verdadeiramente agradecido pelas sinceras manifestações de amizade recebidas. Mochila nas costas, Alarico se dirigiu para a porta de saída da prisão, deixando para traz aqueles homens bêbados e febris, já sentindo a saudade apertar-lhe o peito.  

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires é Advogado e Escritor  

 

       

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