REMINISCÊNCIAS
José Cândido Póvoa* (jcpovoa@hotmail.com)
17/07/2005
(Dedico esta crônica ao Professor Renato, primo/irmão, que
inesperadamente nos deixou a questionar os segredos da vida e da morte
!)
Quando o sol
apontava iluminando a Serra Geral e acordando a minha querida Dianópolis,
a alegria da casa dos meus tios Aníbal e Guiomar já contava com minha presença,
pronto aos desafios que se anunciavam para meu mundo infantil. Os primos Vi,
Renato e Edmar, transformavam cada dia
em nova etapa alegre e simples. Casa de portais antigos e telhado já dobrado
pelo tempo, e um imenso quintal, compunham aquele lugar. Em tudo um ar de
despretensão e harmonia. Razões suficientes para fazer daquele local um palácio
de ilusões a satisfazer meus sonhos de criança. Era a continuação do meu
autêntico lar, onde aprendi que o amor está acima de tudo. Impressionante
era a dedicação e obediência que os primos devotavam aos meus tios (muito
raro nos dias de hoje), que com humildade estampada nos rostos e gestos,
sabiam impor suas vontades nos momentos necessários, provando que a
simplicidade e o amor são gêmeos e devem estar sempre juntos. A velha estiva
(tulha), sempre cheia de cereais, num abraço fraterno aquecia frutas da estação,
apressando a maturação para saciar nossos quase insaciáveis apetites de
crianças. Quantas manhãs e tardes quentes refrigeradas pelos banhos no Córrego
Getúlio. E quando o sol reverberava na linda Serra Geral, transformando-a
na miragem de uma cidade bem iluminada e distante, sempre inatingível,
anunciando que o entardecer estava chegando,
partíamos para um pequeno sítio que ficava próximo da cidade para
recolhermos o gado para a ordenha do dia seguinte. Como bate forte em minha
lembrança aquele pedacinho de cerrado ! Ali
estava um pedacinho do céu. Os espinhos pontiagudos a perfurarem
nossos corpos quando buscávamos os frutos vermelhos e
saborosos do veludo (frutinha típica dos brejos nas regiões de
cerrado), agora entendo, eram alfinetes da natureza que até hoje insistem em
não deixar que nos esqueçamos do passado. Sabíamos quais os primeiros e
mais gostosos cocos xodós (macaúba) amadureciam na região. Os imensos
ingazeiros com seus galhos frágeis, transformando-nos em trapezistas
inocentes em busca de sua vagens de polpas brancas, macias e doces, mais
pareciam pacotinhos de algodão doce preparados por algum anjo bom. Sal para o
gado, que aproveitávamos para saborear com manga verde (toda criança gosta,
ou pelos menos gostava). O velho carro de boi, carregado de areia (do barrocão)
e tijolos da (fazendinha) em noites de lua cheia... O canto triste dos seus
eixos eram músicas clássicas compostas pela natureza e regidas pelo coração
de um quase adolescente sonhador. E a viagem empreendida naquele mesmo meio de
transporte para a fazenda Santa Helena ? Madrugada escura, iluminada apenas
por estrelas que desenhavam o firmamento mais bonito do mundo: o céu da minha
infância e da minha terra natal. Alegria da partida para novas emoções a
serem vividas. Velocidade máxima de 5 km/h.
Longa distância a ser vencida. Éramos, Edmar (agora médico) e eu, os
passageiros empoleirados,literalmente, com um velho galo que levávamos para
ser o dono do terreiro da fazenda. Meu tio e os outros primos nos acompanhavam
a pé. Gozávamos do privilégio da idade menor e da estatura. O dia começava
a surgir e um bom pedaço de chão havia ficado para trás. Nós, os
passageiros, fingíamos dormir e curtíamos o canto daquela ave que anunciava
o alvorecer, cumprindo o desígnio que Deus lhe impôs. Foi quando na
travessia de um córrego, meu tio pediu que deixássemos o carro, pois o
perigo era iminente. Os barrancos do rio eram mais altos que a vontade de não
molharmos os pés no orvalho do amanhecer. Enfim, cedemos às ponderações
apresentadas. Foi o tempo exato dos bois entrarem na água e uma das
rodas atingindo uma das ribanceiras, provocar
o capotamento do carro, jogando
toda carga no riacho, exatamente quando o galo iniciava mais uma partitura,
que foi interrompida, calando para sempre o canto e a vida daquele galináceo,
a partir daquele momento, nosso ex-companheiro de viagem. Fomos salvos pelo
bom senso do meu tio. E a viagem continuou e a vida também, provando que prudência
e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
*José Cândido Póvoa – Advogado e poeta –