MISSÃO DE DURO
 

Wilson José Rodrigues Gomes*

04/06/2006

Entre os longínquos anos de 1836 e 1841, esteve no Brasil o famoso naturalista escocês George Gardner, percorrendo inóspitas regiões, principalmente das províncias do Norte, num ardoroso trabalho de identificação de espécies animais e vegetais, muitas até então completamente desconhecidas do mundo científico. As andanças feitas pelo cientista foram compiladas e publicadas no livro Viagem ao Interior do Brasil, e sua primeira edição, em língua inglesa, data de 1846. No Brasil, a mencionada obra só foi publicada em 1975, com a interveniência da Universidade de São Paulo, com tradução de Milton Amado.

Dentre os inúmeros vilarejos e grotões visitados por George Gardner e sua comitiva, inclui-se a Missão de Duro (sic), - corruptela de D’ouro, topônimo escolhido em virtude da grande incidência de ouro na região - então uma aldeia indígena com cerca de vinte casas, conforme assinala o próprio naturalista.

Em 1884 a Missão de Duro passa a se chamar Arraial de São José do Duro. Em 1938 é elevada à categoria de cidade, com o nome de Dianópolis.

Chantada no sopé da serra Geral, a sudeste do Estado do Tocantins, Dianópolis experimenta, hoje, uma nova fase de desenvolvimento. A criação do Estado do Tocantins lhe foi sobremaneira benéfica, saiu docorredor da miséria e entrou no corredor da esperança. Há evidentes indicativos de um futuro mais promissor.

Enquanto esse futuro não se faz presente, vamos empreender uma breve viagem ao passado, volver no tempo uns 160 anos, mais ou menos, seguindo as pegadas deixadas por Sir George Gardner, por ocasião da sua estada em Missão de Duro, narrada nas páginas 147 a 150 da citada obra.

Bem cedo na manhã seguinte, partimos com a intenção de ir diretamente ao Duro, missão índia a umas quatro léguas de distância; mas, a uma légua desse ponto, erramos o caminho e andamos quase duas léguas antes que o guia desse pleno engano. Como era então meio-dia mais ou menos, paramos para o almoço à sombra de uma grande Vochysia que cobria uma fonte de límpidas águas. Mal, porém, nos havíamos apossado deste sítio, nosso direito de posse foi embargado por milhares de pequenas abelhas, de tamanho menor que o de uma mosca comum. Saindo do oco de grande árvore onde habitavam, vieram zumbindo e voando-nos em torno do rosto e embaraçando-se em nossos cabelos. Tornaram-se menos incômodas depois de acendermos um grande fogo. O único de nosso de grupo que se mostrou muito alarmado com elas foi o meu macaquinho que, quando enxamearam em torno de sua cabeça, cobriu-a com as mãos e, guinchando aflitivamente, pulou em mim e escondeu-se em baixo do meu casaco.

A região que percorremos antes de chegar a este lugar é de superfície ondulante e consiste principalmente em grandes campos abertos, cujo solo é em geral de areia branca; sendo escassamente cobertos de vegetação herbácea, tornava-se muito fatigante à vista o reflexo vivo do sol. Nestes campos, como na Chapada da Mangabeira, é muito comum um cajueiro nanico, de não mais de um pé de altura, que cresce gregariamente. Achei-o em flor e com fruto, este pouco maior que uma groselha. Parece distinto da espécie arbórea e é chamado caju rasteiro pelos brasileiros.

Embora as partes montanhosas da região sejam secas e de árida aparência, as pequenas concavidades ou vales que as cortam têm sempre um pequeno regato límpido e fresco que as rega e são geralmente bem cobertas de mata.

A cerca de meia milha da Aldeia de Duro alcançamos um índio de volta das matas, que nos levou à casa de um de seus dois capitães, a quem pedimos indicasse uma casa de pouso; mas ele não sabia de nenhuma.

Depois de certo tempo tivemos licença de ocupar uma inacabada, toda aberta em redor mas bem coberta, e que tornamos algo confortável, cercando-a de couros.

Como achei necessário ficar ali por alguns dias, alegrou-me poder ocupar mesmo tal casa, pois não era seguro expor-nos ao relento, agora que as chuvas estavam chegando.

A Missão de Duro situa-se na Serra do mesmo nome, sobre uma colina baixa e achatada, em torno de cuja base ocidental corre o pequeno Riacho de Sucuriú, que em todas as estações supre os habitantes de abundante e excelente água. A aldeia tem cerca de vinte casas, todas do mais mísero tipo. A maior parte é feita com armação de estacas cobertas de palmas e muitas se acham de tal maneira avariadas pelos efeitos unidos de anos e intempéries, que já nem sequer servem de abrigo contra o vento; outras, construídas de varas barreadas, estão ainda em piores condições. São dispostas de modo a formar um quadrado irregular, mas dois lados ainda permanecem quase abertos; do lado oeste há uma pequena igreja quase em ruína, com um grande jenipapeiro na frente. A missão abrange, ao todo, doze léguas quadradas da região, havendo sido feita a doação ao tempo de sua formação pelos jesuítas, e neste espaço se acham espalhadas vinte ou trinta outras casas. O total da população, no tempo de minha visita, montava a umas duzentas e cinqüentas almas. Conquanto a maior parte dos habitantes seja de puro sangue índio, há alguns mestiços de pretos, geralmente escravos fugidos, que de tempos em tempos ali se vieram estabelecer entre os primeiros. É fácil, porém, reconhecer o índio puro por sua cor avermelhada, cabelos longos e lisos, ossos das faces salientes, e a obliqüidade peculiar dos olhos. Embora a raça atual tenha sido criada em grau de relativa civilização, ainda conserva muitas características da selvageria. Alguns dos mais respeitáveis deles vestem-se da mesma maneira que os brasileiros do sertão: calças curtas de algodão, com camisa do mesmo pano solta por cima delas; outros usam apenas ceroulas, que em geral, estão longe de limpas, feitas de um pano grosseiro tecido pelas mulheres. O vestuário destas, é, por sua vez, muito simples: poucas usam uma camisa e saia de chita; a maioria, porém, veste apenas uma saia, do mesmo estofo grosseiro que os homens usam, presa à cintura, e nuas daí para cima.

As meninas andam inteiramente nuas até os nove ou dez anos, e os rapazes até os onze ou quatorze. Algumas das mocinhas têm o rosto bastante bonito, mas que não conservam por muito tempo, a julgar pela aparência das mais velhas.

Apesar de se prestarem o clima e o solo da missão à cultura dos vários produtos dos climas tropicais, os habitantes são tão indolentes, que vivem geralmente famintos. Não encontrei aqui farinha de mandioca, nem arroz, cará, batata doce, nem bananas; e, como ao chegar aqui nossa provisão de carne estivesse quase acabada, teve a maior dificuldade para conseguir comprar uma vaca. Todo o gado existente na missão não passa de quarenta cabeças, pertencentes estas a dois indivíduos. Possuem ao todo só dezessete cavalos. A parte principal do alimento desta gente é de natureza vegetal: frutas silvestres que buscam nas matas, tais como cocos de diferentes espécies de palmeiras, os frutos do pequi, puçá, mangaba, jatobá, pitomba, goiaba, araçá e outros. Na estação em que ali estivemos o principal fruto de que se serviam era uma espécie de coco, de cerca de polegada e meia, a que chamam xodó. Cortam-lhe primeiro a parte carnosa, que corresponde à porção fibrosa do coco, usando depois uma grande pedra, que geralmente fica à porta, para quebrar a noz e tirar-lhe a substância interior. Muitos destes índios costumavam levantar-se bem cedo, despertados por uma espécie de tambor, para irem às matas do oeste catar estas nozes e durante o resto do dia nada mais se ouvia na aldeia senão o ruído da quebra das nozes entre duas pedras. O pouco de sua alimentação animal é obtido pela caça, ocupação em que os moços se comprazem muito mais que no trabalho das plantações.

Poucos dias depois de chegarmos uns treze ou quatorze deles foram caçar do outro lado da Chapada da Mangabeira, voltando após oito dias de ausência carregados de carne de veado e de queixada, já meio assada, recurso que usam à falta de sal, para preservá-la por alguns dias. De volta à aldeia, dividiram com os amigos estes despojos, que foram imediatamente devorados sem sal ou qualquer espécie de vegetal, exceto umas poucas pimentas. No dia seguinte quase não se via um índio andando cá fora: como a boa constrictor (cobra jibóia), digeriam, dormindo, o excessivo alimento. Quando matamos a vaca, tive receio de que nada nos deixassem dela, porque um pedia a cabeça; outro, os pés; o terceiro o fígado, e assim por diante, com todas as vísceras; esgotadas estas começaram a pedir pedaços da própria carne.

Até o último decênio havia um sacerdote residente entre eles, mas desde esse período ficaram sem nenhum. Vista-os uma vez por ano, durante poucos dias, o que reside na Vila de Natividade, a trinta léguas da aldeia, onde se celebram os casamentos e se fazem os batizados das crianças. Não há escola na aldeia e as únicas pessoas que sabem ler e escrever são os dois capitães, um deles homem de quarentas anos; o outro, que se chama Luís Francisco Pinto, contava então setenta e quatro e dele obtive quase todas as minhas informações referentes à missão. Sua esposa, quase tão idosa como ele, estava presa ao leito por hidropisia. Visite-a freqüentemente durante nossa permanência, receitando os medicamentos que me pareciam adequados, mas o que ela mais apreciava era um pequeno bule de chá que eu lhe mandava de manhã e de tarde. Parte da parede do quarto em que jazia a doente havia caído, mas na abertura se puseram folhas de palmeira numa tentativa para resguardá-la do vento e da chuva.

Todos os habitantes falam português, mas muitos ainda conservam a língua de seus antepassados.

Pelo velho capitão fui informado de que a missão se estabelecera no ano de 1730, com tropas trazidas de Pernambuco pelo tenente-coronel Wenceslau Gomes, que conquistara a tribo dos índios coroás, dos quais descende a raça atual. Formaram-se então três aldeias, com  um total aproximado de mil indivíduos. Aquelas três aldeias uniram-se para formar a que hoje se chama Duro e em sua própria língua Ropechedi, que significa bela situação, título bem merecido. Notei também que os habitantes vivem aqui em constante receio dos índios xerentes que habitam as selvas das margens do Tocantins, ao noroeste de Duro. Estes índios têm feito diversos ataques à missão; mas a vez em que cometeram a maior devastação foi no ano de 1789, quando um bando deles, em número superior a duzentos, cercou a aldeia pelas dez horas da manhã; antes do anoitecer tinham queimado todas às casas dos arredores, matando cerca de quarenta pessoas entre homens, mulheres e crianças. Carregaram também consigo quatro crianças, duas das quais sobrinhos do velho capitão. Os habitantes da aldeia sustentaram fogo constante contra os xerentes, não sabendo, porém, quantos deles haviam morrido, pois os atacantes levaram todos os seus mortos, quando se retiraram.

Por várias noites durante nossa visita à missão viam-se fogueiras nas serras, não longe; e certo dia, quando um dos habitantes voltava das matas, viu um índio armado de arco e flecha atravessar o caminho à sua frente. Isto levou os moradores a temerem novo ataque, pois estavam muito mal preparados para enfrentar. Antigamente dispunham de armas e munições que anualmente eram mandadas pelo governo; mas fazia já anos que não vinham armas novas e as velhas estavam então quase imprestáveis. Em caso de necessidade o governo pode chamar os capitães com seus homens para o campo da luta e cada qual pode reunir cerca de quarenta indivíduos capazes de levar armas. Alguns destes índios possuem espingardas próprias que usam na caça, com pólvora grosseira, fabricada por eles mesmos.

Alguns negociantes das vilas do sudoeste descem anualmente o Rio Tocantins para irem ao Pará vender couros e comprar artigos europeus. E muito freqüentemente alguns dos moços de Duro alugam-se para trabalhar nas canoas e com o salário que recebem compram no Pará machados e outras ferramentas. Um  grupo deles voltou de uma dessas viagens durante nossa vista.

Na quinzena de nossa permanência na Aldeia do Duro estive principalmente ocupado em secar a imensa coleção de espécimes colhidos na última viagem através dos Gerais e da Chapada da Mangabeira, bem como em acondicionar os que obtivera entre Santa Rosa e Duro. Fiz também muitas excursões nos arredores da aldeia, onde encontrei excelente campo de pesquisa, embora fosse então o fim da estação seca.

 


 (*) Advogado, técnico de segurança do trabalho e consultor de empresas na área de saúde e segurança do trabalho.

       

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