CHAPADA

 

Wilson José Rodrigues Gomes*

 15/02/2004

 

 

O dia amanheceu saudoso. Um vento geral soprava desde as primeiras horas da manhã, atiçando as folhas das árvores da chapada e as palhas dos buritis num brejo próximo.

Sentado num cepo de imburuçu, Morais esgravatava o pé com a ponta do velho canivete corneta briquitando pra tirar uma flepa que heroicamente havia penetrado naquela pele dura e áspera que nem cascabuio. Sua cabeça estava uma tribuzana de atrevidas lembranças enganchadas no passado. Todo ano naquela época era a mesma coisa. Quando a ventania de agosto batia por aquelas bandas trazia uma estranha saudade não sabia de que, mas ele gostava muito disso...

- Ô Morais, num tá veno o Ermiro fazeno tambiroca no barrocão da rodage? Eu falo mais num dianta, ele fica é quebrano pau nos ouvido. Sunga essa carça Ermiro!  Óia cuma ele tá breado! Êta minino seboso! É purisso qui só veve difluxado.

- Deixa o bichim muié, o minino só tá veno os festeiro descer pra Sicupira.

Sicupira! Como não alembrar dos velhos tempos de rapaz, quando não perdia uma romaria. O baticum truava a noite toda, não tinha essa bestage de parar meia-noite que nem agora, não. Aquilo sim, é que era festa! Nas barraca tinha fartura de tudo qui era trem: bolo de arroz, bolo graveto, farinha de puba, carne seca, frito e mais um horror de coisa boa, pois os festeiro trazia bruaca e bruaca de mantimento pra ficar arranchado muitos dias. O foguetório não parava e moça bonita era mato. Vez em quando saía alguma rusga de chilado pro mode rabo de saia, mas nada que tirasse a animação da festa. Quando Ozebe pegava na pé-de-bode ninguém ficava parado, nem as moça gostava de passar taboca quando Ozebe tava tocano. Êta sanfoneiro bão!

- Morais, cê pudia era ir na Rua comprá um consolo e matricária pra Zumira, pruquê os dente dela tá pra nascer, e umas pirla-contra pra vê se saro logo desse profiro.

- Muié, quem tá cum profiro cura é cum pratudo, e pratudo é o que tem na chapada.

- Que pratudo o quê, home! Ocê é que é um pra nada. Não vale uma pivide de abobra. Só fica aí pipinano esse pé pariceno Jeca. Se ameã eu tiver mió vô surupembar é cedo atrás de meu remédio e ocê vê se deixa de sê pazoba e faz o dicumê e óia os minino - tinham três filhos: Zumira, Ermírio Filho e Ananias, o mais velho, um pilungo com pouco mais de metro de altura e que tinha um respeitável papo, as pernas cambotas espurucadas de curuba e ainda por cima era zanoio e bobó.

- Êta muié tucuda, língua de tramela. Vai tirá cipó pra trançá balai, sô! Deus que me livre dum trem desse! Isso nem parece muié, parece mais um sargente, vai gostá de mandá assim na ...

- Qui é qui ocê tá budejano aí, seu palesma?

- Nada não, só tô gungunano uma musguinha antiga.

 Vôte! Qué sabê? – desta vez só pensando. Se alguém tem que surupembar aqui, esse alguém é eu. Ameã vô suverter no mundo pra qualquer banda, aqui é que num fico nem mais um tiquim. Se me atentá vô batê na Sicupira.

Dia seguinte, quando o Sol nasceu, Morais já havia torado  mais de légua e meia. No romper do dia tomou café torrado com tolda e forrou o estômago com um grolô de ovo com berduégua e farinha de puba que ele mesmo preparou. Saiu de fininho sem nada dizer para a mulher, ia caçar, não sabia quando voltava. Sua bagagem se resumia numa capanga contendo farinha, rapadura, um taco de carne de catingueiro seca, alguma munição e mais umas burundangas miúdas. Uma rede, um facão e a lazarina. Ah! Levava também na capanga, uma pedra buliada de muita serventia na hora bater osso e tirar o tutano quando alguém lhe ofertasse dicumê que tivesse corredor no feijão. Não que ele fosse um samiado, isso não, mas um homem prevenido vale por dois.

Num banco de areia muito alva, favorecido por uma sombra, Morais parou para fazer o que seria a segunda refeição do dia, que não ia além de um taco de carne seca com farinha. Enquanto fazia a frugal refeição, correu a vista pelas imediações e levou um baque, como se tivesse visto uma livusia, uma visage ou um lubizone. Tava tudo demudado. Aquelas paragens que há eras não via, ele conhecia desde os tempos de menino quando veredava por ali entre as vassourinhas, à sombra dos pés de mirindiba, puçá, puçá de croa, candial, piqui, sabiú, mangaba, jatobá, bruto, cagaita, murici, saboreando os deliciosos coquinhos rasteiros, marmelada de bezerro, marmelada de cachorro, bureré, grão de galo, viludo, angelca, remela de galinha e muitas outras frutas que só existem na chapada.

No seu tempo de criança, saía zanzando pela chapada tocando borá, panhando lenha de araçá, pelotiando com baladeira ou badoque, ou campeando os cajuzinhos depois das primeiras águas, porque antes era riscoso pegar pneumonia. Naquele tempo a chapada parecia não ser de ninguém e ao mesmo tempo ser de todo o mundo. Não havia cerca de arame, o gado era solto e se misturava sem nenhuma confusão, pois todo mundo sabia a quem pertencia e cada qual tinha seus direitos respeitados. Morais naquele momento lembrava até de Ruída, uma vaca de seu Duca dos Piaus que era o terror da chapada. Nunca se viu vaca tão remetedeira que nem Ruída, que recebeu esse nome porque em volta dos olhos a cor era preta, enquanto o resto do corpo era todo branco, dando a impressão de que a cara tinha sido ruída.

A realidade agora é outra. Morais está pasmo diante de um cenário que nunca imaginara ver um dia. A chapada devastada, toda cercada de arame farpado e cheia de gado. Não há mais os trieiros que serpenteavam entre as tortuosas árvores interligando os esparsos moradores, as cercas de arame tornaram-se inconvenientes obstáculos. Mas isso não era o pior: cadê os pés de puçá, piqui, cagaita, jatobá, pau d’arco, candial, pau d’olho, bruto, pau terra, sabiú, joão mole? Cadê as vassourinhas, os pés de buritirana? Cadê a água fininha e gostosa que nascia ali mesmo? Secou tudo, meu Deus!

Morais, que sempre foi um bariru, aprendeu com seu pai, que aprendeu com seu avô, que nunca se deve cortar pau na cabeceira de brejo ou de corgo porque seca a nascente, ele sempre respeitou isso. Bariru respeita a chapada, a Natureza. Respeita os bichos do mato, só mata bicho pra comer.

Certa vez ele escutou alguém dizer lá na Rua, que tinha chegado um povo do Sul com muita sabedoria, que ia mudernizar as roças e a criação de gado. Ouviu dizer também, que esse pessoal não usava foice nem machado pra brocar e derribar roça, usava era dois sudu de trator e em cada um prendia a ponta de uma lepa de corrente e saíam chapada adentro derribando tudo que era pau que achavam pela frente. Pau com mais de cem anos tombava num piscar de olho, com a motosserra tirava a madeira e tacava fogo no resto, depois lascava uma cerca de arame e botava gado.

Profundamente descabriado com o que via, Morais tirou o papa-fogo da capanga e acendeu um cigarro de palha, deu algumas baforadas para ter certeza de que estava aceso. O que via lhe dava uma tristeza como há muito não sentia. Estava diante de uma grave situação: o bicho homem tá acabando com a Natureza, destruindo a Terra e matando a Vida. Escunjuro de um trem desse!

Morais não compreendia certas coisas. Dias atrás, quando vendia umas esteiras na Rua, ficou muito insuado, pois foi ameaçado por uns homens que se diziam ser de um tal de IBAMA, que falaram pra ele não tirar mais palhas de buriti para fazer tapiti nem esteira, nem matar bicho do mato, pois poderia ser preso e ainda pagar multa. Na mesma ocasião falaram pra ele, que se pagasse a licença podia cortar o que quisesse. Agora estava ali diante da morte do próprio planeta e ninguém falava nada. Que diacho de lei é essa?

Já estava ali há um tempão ruminando seus pensamentos e ainda não tinha visto nenhum passarinho, nenhum bicho, e esse era o ponto deles beber água. Quanto bicho do mato ele viu zanzando no passado por ali: jacu, galinha d’água, sariema, jaó, saracura, alma de gato, lambu, fogo pagô, mutum, perdiz, pruvu, cotrebéu, soim, preá, gato maracaiau, mocó, catingueiro e muitos outros. Quando era de noite escutava a cantiga penosa da mãe-da-lua, caburé, coã, priangu, hoje quase não se ouve mais. Nem urubu tem mais como antigamente. E as almas de tapuio, que cantavam lá no olho dos pés de buriti, esguaritaram pra onde? Ou desapareceram para sempre?

Mas era preciso continuar a jornada. Pegou sua mucuta e lapiou o pé na estrada. A precata salga-bunda, feita de couro cru por ele mesmo, levantava puim no areião quente e espatifava areia pra todo lado, marcando a métrica de seus tristes passos: plec, plec, plec, plec. Sem nenhuma pressa caminhava no passo da coã, se não chegar hoje é amanhã.

A decepção de Morais haveria de continuar. Algumas passadas à frente mais degradação: numa lagoa de água morna, no passado muito bonita, ele viu garrafas vazias, latas de cerveja, carteiras de cigarro, copos de matéria plástica, sacolas de supermercado, garrafas de refrigerante, etc., que sem uma nesga de civilidade e respeito pela Natureza os turistas de fim de semana atiçavam no mato e também dentro da lagoa. Diante desse lamentável quadro ele lembrou que viu no livro de ciências do filho Ermírio, que esse tipo de lixo leva anos e anos para desaparecer na Natureza, outros não desaparecem nunca. Matéria plástica, por exemplo, demora mais de 100 anos; lata de cerveja ou refrigerante de 100 a 500 anos; vidro dura para sempre; filtro de cigarro 5 anos; chiclete 5 anos; pilha de lanterna de 100 a 500 anos; fralda de matéria plástica 450 anos; papel de 3 a 6 meses; linha de rede de pescar de 30 a 40 anos; rodeira de automóvel dura para sempre.

Morais, na sua ingenuidade de sertanejo, estava muito longe de saber que ele era mais uma inocente vítima da tecnologia consumista, imposta pela tecnocracia de rapina, irresponsável e insana que só visa o lucro. Que só visa o bônus, nada de ônus. Até quando, meu Deus?

 

 

 

 

VOCABULÁRIO

 

 

Angelca (angélica) – fruta silvestre

Bariru (regional) – caipira, sertanejo, matuto

Barrocão – erosão

Berduégua (beldroega) – planta silvestre rasteira que o sertanejo emprega como alimento

Bobó – bobo, tolo

Borá – som produzido ao soprar por entre os dedos indicador e médio com as mãos fechadas em concha

Breado – sujo

Briquitando – pelejando, tentando

Brocar – roçar com foice as árvores menores para depois derrubar as maiores

Budejano (bodejando) – imitando voz de bode

Buliada (regional) – abaulada

Burundanga – quantidade de coisas de pouca importância

Cascabuio (cascabulho) – sabugo de milho, casca da castanha e de várias sementes

Cepo - tora de madeira que serve de assento

Chilado – embriagado

Coã (acauã) – ave tida como agourenta

Corredor – osso da perna do bovino, chambari

Curuba – ferida, pereba

Difluxado (defluxado) – resfriado (corisa)

Esgravatar – remexer, limpar

Espatifava – espalhava

Espurucadas (regional) – com marcas de feridas, sequelas

Flepa - farpa

Grolô (regional) – escaldado, mexido

Gungunar – resmungar

Imburuçu  (embiruçu) - árvore do cerrado

Insuado (regional) - envergonhado

Lapiou o pé na estrada (lapear) – andar a pé

Lazarina – espingarda de cano longo carregada pela boca

Lepa – enorme, descomunal

Livusia (regional) – assombração

Lubizone – lobisomem

Matricária – medicamento em pó, à base de flúor, que era ministrado às crianças antes da primeira dentição 

Mucuta – bagagem

Mussuraca – bagagem

Nesga – pequena quantidade de qualquer coisa

Palesma (palerma) – tolo, arigó, besta

Papa-fogo ou artifício (regional) – isqueiro primitivo feito geralmente da ponta do chifre de gado bovino, recheado de algodão. Do atrito entre uma pedra e uma peça de aço se produzem centelhas que incendeiam o algodão.

Passar taboca (regional) – recusar um convite para dançar

Pazoba – moleirão, frouxo

Pelotiando (regional) – caçando passarinho com baladeira (estilingue) ou badoque (bodoque)

Pernas cambotas – tortas para fora

Pilungo – vocábulo regionalizado designando algo de pequeno porte, sem valor

Pipinar (pepinar) – cortar em pedacinhos, picar

Pirla-contra (pílula contra) – pílula homeopática

Pivide (pevide) – parte das frutas onde ficam as sementes que no preparo da alimentação é jogada fora. ex. abóbora, melão, etc.

Pratudo (paratudo) – planta medicinal

Precata salga-bunda (regional) – alpercata (sandália) rústica feita de couro cru

Profiro (regional) – diarréia, indigestão

Puçá – fruta do puçazeiro, árvore do cerrado encontrada no nordeste goiano e em todo o Estado do Tocantins

Puim (regional) – pó, poeira

Quebrano pau nos ouvido – não dar ouvidos, fazer-se de surdo

Rodage (rodagem) – rodovia

Rusga – briga, confusão

Samiado (regional) – esfomeado, faminto

Seboso – sujo, encardido 

Sicupira (Sucupira) – romaria que ocorre na primeira semana de agosto na região rural de Dianópolis – TO

Sudu (regional) – grande, enorme

Sungar (regional) - erguer

Surupembar (regional) – ir embora, viajar

Suverter (soverter) – desaparecer, sumir

Tambiroca (regional) – brincadeira que consiste em rolar na terra por cima da cabeça

Tapiti – utensílio primitivo (indígena) feito da palha do talo da folha de buriti, utilizado para enxugar a massa da mandioca 

Tolda (café com tolda) – café torrado com rapadura para se obter sabor e odor fortes

Tramela – peça de madeira usada para trancar portas e janelas, tagarela (por extensão)

Tribuzana – rolo, confusão

Tucuda – malvada

Veredava (regional) – caminhava à toa

Viludo (veludo) - fruta silvestre

Visage (visagem) – fantasma, assombração

Zanoio (zanolho) – zarolho

 

*Advogado, com pós graduação em gestão ambiental e consultor de empresas na área de saúde e segurança do trabalhador.