CHUVAS
DO CAJU
José
Cândido Póvoa – advogado e poeta (jcpovoa@hotmail.com)
(26/10/2004)
Nesta época do ano, quando a natureza se prepara para nos
presentear com as primeiras chuvas e a terra árida e ferida pelo sol
causticante aguarda o milagre do líquido cicatrizante das águas;
quando as árvores dos quintais e dos campos se angustiam à espera de
madrugadas acompanhadas daquela chuva fininha e dormideira, na
expectativa de eclodir em vidas na forma de flores e frutos; quando
todos os vales preparam-se
para desabrochar e as manhãs e tardes fazem-se nubladas e mais quentes,
duvido que exista alguma pessoa, principalmente nascida no
interior, que não se deixe embalar por esse momento mágico das
primeiras chuvas e passe a recordar o tempo de criança, quando
aprendemos tratar-se das
chuvas do caju; duvido que
não se lembre da época em
que os números tinham valor apenas para as quatro operações matemáticas
sem disputa de valores materiais, servindo mais para contar
emoções e marcar o tempo sem compromissos; duvido que não se
lembre dos quintais que não conheciam cercas elétricas, e suas divisas
eram apenas a amizade e o respeitos pelos vizinhos; das mangueiras,
laranjeiras, videiras e amoreiras floridas, forrando o chão a cada
ventania; do sabugueiro milagroso espalhando flores brancas; do caju
temporão e da manga verde com sal; das noites quentes quando todos
sentavam-se à porta de casa
para estreitarem amizades e ouvir o serviço de alto falante da
cidade e alguém sempre oferecendo música para outro alguém; duvido
que não se lembre das brincadeiras de esconde-esconde, salva
companheiro, pular cordas, salto de distância, das disputas dos jogos
de finca, pião e bola de gude à sombra de grandes árvores; que não
se lembre da sirene ou do sino marcando os horários das aulas, das
refeições e do descanso diário para toda cidade; dos banhos
escondidos dos pais nos córregos e rios da região; que não se
lembre das roças queimadas pelos menos avisados e ingênuos
agricultores, provocando
grande fumaça e calcinando a
terra; das melancias “roubadas” em pequenas roças; das arapucas, alçapões
e caçadas de juritis e inhambus; que não se lembre do lar antigo em
rua tão simples, que ficou para trás com os pais, irmãos e amigos. E
neste momento tão especial, ouso transcrever um poema intitulado
“Primeiras Chuvas”:...e esse rito pré-nupcial da terra /
Adolescente em amor / Das primeiras chuvas a espera ?/ Envolvendo-se num
véu de fumaça sufocante / Abafando o sol, escondendo a lua / Num ciúme
de cio a terra se aquece. /E o ritual continua.../ Trovões, raios /
Como na última primavera./ A terra se prepara para o ato final. / O líquido
frio desce / Em suas entranhas penetra.../ A terra saciada,/ ”Com
cheiro bom de fêmea fecundada”/ Outra primavera aguarda / Que trará
novas chuvas / E repetirão o ritual sagrado.” E
surpreendo-me, novamente, tentando decifrar esse grande apego aos
símbolos da infância aliados às chuvas do caju. Essa ligação tão
íntima com a natureza, esse amor tão intenso pela terra e,
encontro apenas uma plausível explicação no preceito bíblico:
tu és pó e em pó hás de tornar.
(publicado no Jornal do Tocantins em agosto de 2002)