Gesimário de F. Carvalho

 

Supressão

Recusei, por uma espécie de medo inconstante,
incluir aquele mero instante
no meu já inquietado memorial.
É como se por fim fosse bastante
degustar aquele piquenique de ontem
tão escasso de sol e sal.

Ausência

Quando bate o frio
e o pé enregela
como o trilho da janela,
me lembra de ti
como aquela
peça no tear
em solitária manhã:
fios ladeados
do meu surrado
casaco de lã.

Mãos

Minhas mãos são julgadas
por cada aceno e cada recolhimento.
Minhas luvas, meus frios.
Meus incertos traçados
nos mapas e nas palmas
confundindo os caminhos do sol
entrepostos na alma.
Minhas mãos são cálidas, compassivas.
Se a caldeira crepita
carbonizando as culpas transferidas
no risco das curvas,
minhas mãos são turvas,
quando não são concisas ou coniventes.
Ou são presentes, ressentidas,
quando não trazem o mesmo tato
das carícias esquecidas.
Minhas mãos são subjugadas
sendo ameno ou desfalecido.
Abertas em tentativa desusada
de serem contemplativas,
minhas mãos são missivas.
Maceram-se sendo servas de servir
à sorte do silêncio:
silentes, condoídas.
Desnecessários calos
que denunciam a lida.
Minhas mãos são vãos
entre sins e nãos
da sorte combatida.
Elas são plantas , eu sei.
Minhas mãos são tantas:
entontecidas ou não.
Endoidecidas , trêmulas.
Fabrico algo de crível
do invisível das coisas efêmeras.
Minhas mãos crucificam
ou alojam cravos
que nem se imaginam
fixando a eternidade.
Delatam, quando sou humano,
e se retraem, prontas,
procurando água e isenção.

A criação

O artista zombava do amor pelas esquinas
e o amor zombava do artista.
Pintava o amor numa tela
como uma donzela despida.
E como zombar era próprio dela
a donzela tomava vida.
O artista zombava do amor, como da sina,
e o amor zombava, ainda, egoísta,
como quem sabe que quem pinta
sua desnuda quimera
pinta, antes, a alma da nudista.

Síncope

Todas as luzes são exangues
para minhas veias sem sangue;
todas as naus, submersas,
todos os sinais, ilusão;
todos os segredos são frestas,
todos os caos, solidão.
Todos os princípios
que por mim não precipitam
por meu cordão umbilical;
todas as sinas
que por mim não atestam,
deferem ou assinam meu ponto final,
são sentenças, do juízo ausente,
que anunciam a minha morte aparente
a quem não sente minha morte natural.

Rosa

Me perdoe, rosa
meus atropelados cuidados:
é que um tempo mais longo
na ocupação de outro ofício
às vezes distrai a candura do tato
no trato de uma flor.
E nem é somente o gesto
(já que te confesso
esses pequenos pecados
de um circunstancial egresso)
de esboçar o toque,
outras sutilezas nos escapam
no labor diverso que não inclui
essa forma de cultivo.
Se agora me constrange
minha incompreensão de pétala,
é que me assola a ausência de pólen
viscejando no jardim,
e meu coração bate apiforme.

Dossiê

Sou de um lugar
remoto e estranho.
Sou fundido de ferro,
de estanho e de ossos.
Dilato e fraturo;
distendo, permaneço...
Mas sou volátil, também,
sobretudo quando começo.
Sou limalha de gens
na generosa palma
da mão de um deus.
Na fornalha que forja
a alma tátil dos homens
bons e maus.

Memorial dos princípios

 

Fosse uma coisa de se aprisionar, meu caro,
e eu te mostraria um colar de pedras várias.
Espancaria sua sensibilidade
como um boxer renitente.
Seria sóbrio aqui, esperançoso acolá,
e, volta e meia, me daria o direito
de ser dramático,
secar, de flanela, lágrimas que impossibilitei.
Meu compasso aqui não é esférico
(não é geometria);
meu passo não entende meu coração;
e pulso como quem tropeça
na incerteza dos olhos.
Tenho uma vaga lembrança do relógio;
um mero conhecer do calendário.
Todos os redemoinhos do rio Tocantins
são plágio da minha dança.
A serra do Carmo
persiana o meu leste
eternamente chuvosa,
neblinosa, distante
quase tanto quanta algumas lembranças.
Vou me diluindo, me recompondo,
na vastidão da Teotônio.
Me imagino pedaços de belo,
minha estética mais fina
estampada nas suas flores simétricas.
Talvez nem fosse apenas isso:
um semblante apreensivo
sob o sol escaldante.
Mas tristeza é cortiça: emerge.
Além do quê
o espaço exíguo das moradas
comprime nossa expiração
numa quase autofágica consumação.
Mas tudo tem laivos de doçura.
Tudo...
E eu creio, tanto quanto existe
o sorriso bonachão dos girassóis,
que florescemos.
Por isso,
por essa alagada paisagem,
nós depositamos, zelosamente,
nossas saudades
no oratório do dia a dia,
como quem escreve cartas
ao dia de amanhã.

Mulher

Quem forjou
numa secreta oficina
todas as partes que te põe de pé?
Ou melhor,
quem ousou conceber-te,
e porque não dizer, imaginar-te,
obra-de-arte, auto de fé?
Quem urdiu cada segredo
que alimenta a luz dos teus olhos,
coreografou a dança dos teus passos,
tingiu teus lábios dessa cor
que envenena minha paz?
Quem te fez insinuante,
suspeita do pecado;
aveludou tua pele
pra que eu me perdesse sem sentir
e por fim plantou na tua face
essa luz de eterna miragem?
Enfim, perdoe que eu insista,
por que esse soberbo artista
(antes de acabar-te)
que te imaginou, te concebeu,
não cuidou que eu
coubesse em mim de amar-te?

Credo

Creio em Deus Pai, todo poderoso...
e creio em seus filhos,
pois ninguém é órfão da existência.
Ninguém passa em vão o labutar do dia.
Ninguém empresta o peito a uma inútil alegria.
Nem mesmo suas dores,
indesejadas filhas do seu tino,
são uma aliança perdida do destino.
Creio...
e creio, num tão profundo crer,
que ao saber menor empresto o pasmo da grandeza
e reservo um lugar ao infinito em minha mesa.
 
A fuga

Rosa,
saí às pressas
e deixei gavetas entreabertas,
o vinho na taça,
meu olhar espantado no espelho,
e um sono mal desperto
amarrotado no lençol.
Deixei sua lembrança
girando a maçaneta da porta.
Saí às pressas, Rosa,
e deixei a saudade pela metade.

Para os mortos chorados
e os esquecidos da favela

de Vigário Geral

Quem os guardará do medo agora...?
Ou valerá pelo sonho dos seus filhos?
Essas faces sombrias, meu senhor,
que desce de capuz sobre o silêncio mortal
das noites desprotegidas,
povoam de morte o sono apavorado
dos homens.
Viver é uma armadilha que espreita
a porta descerrada,
unge de sangue o coração
que pulsa e agoniza.
Pois quem soube a brisa e não sabe
o sopro sulfuroso do inferno,
não saberá jamais a dor cortante
da terra que o sepulta.
Viver (e você saberia...!) é essa agonia
da última hora dividida entre os desvalidos
e servida fria aos que permanecem.
Encarecemos, Deus, um mínimo atender:
ofereça a seus filhos soltos entre as feras
a mão, não vingadora, mas piedosa,
que desarme as mãos que portam o terror.

 

Noturno

São três horas,
talvez quatro, quem sabe
- a madrugada é inexata como o fato.
A cidade é míope,
a esquina, surda como porta;
a avenida, mão-dupla, é hemiplégica,
inerte como a sorte furtada.
Que a morte fuja, quem se importa?!
A rua suja consome toda prova.
Até que por fim,
ruidosa, ruinosa, arruinada,
a cidade desperte aparvalhada.
Condená-la, quem há-de?

Proposta

Agora é trilhar os vultos da insônia,
matar a sede antiga de naufrágio.
Vestir uma roupa de dândi
e fartar o espelho de nós.
Desamordaçar o grito dos apelos
antes tratado com reserva e zelo
e ser quase imprudente.
Morder toda fome possível dos dentes
e deixar marcas indecorosas, extravagantes;
como os animais no seu amar sem tino,
como o vendaval na cama dos amantes.
Agora é fitar em nós sem segredos,
sem riscos, sem raso, nem largo, nem fundo,
e gozar inteiros todos os gozos do mundo.

Noites

De quantas cores brilha
o coração da noite?
Da noite possuída
da noite abandonada
da noite revivida
da noite desejada.
Da noite marcada de beijos
que não cabe em si de desejos.
Desta, resoluta, impudica,
pública, revolvida,
estendida, sem drama,
sem mistério;
povoada de segredo
e de notícia,
consumida de medo
e de malícia.
De quantas cores brilha o coração?
Do que nega o sim,
do que acolhe o não.
Do que rasga o fim
da lição.
Da lição que nasce
onde morre os olhos.
Onde não penetra senão
os cheiros diversos da alma:
almas dolorosas, doloridas;
almas compungidas, generosas;
almas semi-mortas,
semi-vidas.
De quantas cores brilham
as pedras sem trilhas
os prédios sem telhas
as tais armadilhas
das noites velhas?

Balada do amor-próprio

Minha poesia está em prantos
pelos cantos;
e chora nas veias,
na garganta
e nas mãos quase frias.
Mas não chora por si, apenas,
mas por um coração desolado
que pulsa fatigado
sobre as dores que tem.
E se aninha
num canto do peito
e soluça baixinho
e você não ouve
e você não vem.

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Quando setembro vier, se prenunciarão as flores,
as chuvas e uma risonha claridade no ar.
Quando setembro vier, trará consigo
uma inextinguível certeza;
da sua existência, nos jardins de cada dia.
Quando setembro vier, eu sairei ao seu encontro.
Porque sou cultor de plantas raras,
dessas que necessitam do alento abstrato do sentir,
que sobrevivem de gestos, sem medidas,
que se alimentam da presença dos amados
e que se exaure, morre, se extingue
na ausência prolongada do amor.

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