HAGAHÚS ARAUJO E SILVA


 

APRESENTAÇÃO

 

VIDA E OBRA

 

 

        Falar da trajetória de Vida e da Obra do Homem, Educador e Político Hagahús Araújo é dar um testemunho histórico de quanto o idealismo, a determinação e a garra vencem as adversidades. É aprender uma Lição de Cidadania com quem soube fazer das suas ações e dos diferentes cargos que ocupou uma missão de serviço público, mesmo antes e depois de eleito para sucessivos mandatos de prefeito, deputado estadual e deputado federal, assumido a Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social de Goiás e outras funções nos governos estadual e federal.

         Aos 22 anos de idade, Hagahús Araújo foi o mais novo diretor, no país, de obras do então Serviço de Assistência a Menores (SAM), hoje Funabem, órgão do Ministério da Justiça. “No antigo SAM e em outras instituições por onde andei, aprendi como não cuidar de menores, recebendo instruções superiores de quem raramente entendia do assunto”, diz Hagahús. “Ontem, como hoje, eram instituições que tinham o nome de educandários, mas não educavam. Ensinavam a exigir direitos e  esqueciam-se de  que o direito é a conseqüência do dever cumprido, e de que educar é preparar para a vida, é ensinar o aluno a fazer parte de uma coletividade onde o trabalho é obrigação de todos. Enfim, Educar é Ensinar a Viver”.

Com 25 anos de idade, no então sertão de Goiás, Hagahús Araújo funda aquela que foi - e continua sendo - uma das melhores obras sociais do país, o Instituto de Menores, em Dianópolis, terra natal da sua mãe, Amélia Póvoa. Era o ano de 1953. A pobreza e a miséria do antigo nordeste goiano tocaram na alma do jovem que já se via em condições de ajudar aquela região a melhorar quadro tão desolador, através da educação. Nascido em Patos de Minas (MG) em 31 de agosto de 1928, Hagahús já havia se destacado no trabalho junto a menores. Apenas com formação ginasial no Colégio/Internato dos Padres Sacramentinos de Nossa Senhora, em Patos, tornara-se um autodidata e leitor voraz e compulsivo, dono de vastos conhecimentos para sua pouca idade. Discutia qualquer assunto com bons argumentos, serenidade e confiança, conquistando o interlocutor e a comunidade em que vivia com a solidariedade e humildade na assistência aos necessitados, e com  fidalguia, destemor e o dom da liderança que já moldavam a sua personalidade, características que lhe foram sempre marcantes. Ou uma forte herança genética: o seu bisavô paterno, Andrelino Pereira da Silva, o barão do Pajeú, de Vila Bela (PE), hoje Serra Talhada- de família portuguesa e feito nobre por ato de Dom Pedro II -foi “um dos mais influentes e poderosos  políticos pernambucanos do início do século” (jornal O Globo, 2/9/1971, em reportagem de Maura Eustáquia de Oliveira). O velho Aristocrata acolhia todos – políticos, sertanejos e músicos – nos salões de sua residência que contavam com cômodas gigantes “onde eram conservadas, permanentemente limpas, 300 redes de dormir, 300 cordas de couro para armá-las, 300 travesseiros e 300 lençóis recendendo a capim cheiroso.” na descrição do escritor Nertan Macedo. Hagahús é filho de Luiz Pereira da Silva, o “Luiz Padre”, o  neto do barão. Este, com apenas 16 anos e filho único, foi instado pela mãe a vingar a morte do pai, o coronel Manoel Pereira da Silva Jacobina, o “Padre” Pereira, um ex-seminarista (daí o apelido) filho do barão do Pajeú e morto em emboscada pelo clã adversário. Para atender à determinação materna, Luiz se uniu ao seu  primo Sebastião Pereira, o legendário “Sinhô Pereira”, ainda mais moço, e a outros familiares. Sinhô Pereira também era primo de Agamenon Magalhães, depois governador de Pernambuco. Suas avós eram irmãs.

Padre Pereira, avô de Hagahús, era um homem pacífico e caridoso que havia assumido a liderança da família na região, após a morte do pai barão. Vivia para fazer o bem no sertão do Pajeú, principalmente entre os  mais humildes, que o tinham como padrinho de pelo menos um dos seus filhos. Esta era uma forma de demonstrar gratidão a quem se dedicava, diuturnamente, a servir ao próximo e a todos que o procuravam. A exemplo do pai, tinha a casa sempre cheia de amigos e gente do povo, e com comida farta. Foi o escolhido para morrer justamente por sua bondade, por sua liderança e por não ter adversários, o que provocaria a ira da sua poderosa família, como frisam os historiadores.

O assassinato do Padre Pereira - de maneira covarde e brutal- gerou uma das mais cantadas, sangrentas e históricas lutas de família nos sertões nordestinos do início do Século XX, Pereira X Carvalho. Nesses combates, que duraram mais de uma década, Luiz Padre e Sinhô Pereira tiveram Lampião sob os seus comandos, antes deste se tornar o temível cangaceiro e reinar absoluto pelos sertões, após 1923.

Rumos

 

Preocupado com os rumos que essas lutas de família tomavam, o Padre Cícero Romão, do Ceará, aconselhou Luiz Padre a abandonar o Nordeste. Em 1920, Luiz Padre – já com o nome de José Andrelino ou Zeca Piauí – chega ao sertão de Goiás, mais precisamente em São José do Duro, (hoje Dianópolis), onde se casa com Amélia Póvoa, esta com 13 anos de idade. O primo de Zeca, Sinhô Pereira (os pais eram irmãos), teve de retornar a Pernambuco. Só mais tarde, eles voltam a se encontrar em São José do Duro, região também conturbada por lutas locais. Com eles vieram remanescentes do grupo e o major José Inácio, líder político da cidade do Barro (CE). O assassinato do major, de forma vil, gerou cruento conflito com  a facção do líder político da região, o ex-deputado Abílio Wolney .

Mais uma vez, os dois filhos ilustres do sertão do Pajeú decidem recomeçar uma nova vida em outras terras, em Patos de Minas, sob as graças do coronel Farnesi Dias Maciel, irmão do presidente Estadual, Olegário Maciel, de quem se tornam amigos.

Zeca (Luiz Padre) e Chico (Sinhô Pereira) passaram a adotar os nomes de José Araújo e Silva e Francisco Araújo e Silva. Jamais se deixaram fotografar com armas. Vestiam-se de maneira sóbria, não bebiam, não fumavam, não tinham vícios, e o passado de lutas era um tabu na família que vivia apenas para o trabalho, no interior de Minas. Os próprios filhos só tiveram conhecimento dos antecedentes de luta dos seus genitores quando rapazes.

Em 1950/1951, Zeca  e Chico   declinaram do convite do governador de Pernambuco, Agamenon Magalhães, para retornarem  à terra natal. A família, de alguma forma, voltava ao Poder, com a eleição do ilustre parente para o governo do Estado.

 

 

Idealismo

 

Despido do sentimento do medo, até por herança genética, Hagahús enfrentou lutas diferentes dos seus ancestrais. E movido apenas pelo idealismo.

No auge da Guerra Fria e da campanha anticomunista, desencadeada nos Estados Unidos pelo senador norte americano Joseph Raymond MacCarthy (1909-1957), era um desafio educar crianças pobres no sertão do país. O governo estadual negava-se a dar qualquer ajuda, “como se assistência social fosse privilégio de comunista”, lembra Hagahús, que nunca foi militante da esquerda. As informações que chegavam às autoridades eram de que o jovem educador estaria treinando crianças para a “guerrilha”. As portas fechavam-se. Mas o povo de Dianópolis e da região dava um crédito de confiança àquele rapaz destemido e empreendedor, a eles ligado por fortes laços de família.

 

Alguns setores das Forças Armadas, apesar do viés anticomunista, mostraram-se sensíveis à luta de Hagahús. Começaram a atender a seus apelos pessoais, feitos quando ele se dirigia à capital, no Rio, e quando encaminhava aos órgãos públicos inúmeros ofícios que tão bem redigia. Em 1954, os então ministros do Exército e da Aeronáutica (generais Ciro do Espírito Santo Cardoso- tio do ex-presidente Fernando Henrique- e Nero Moura, respectivamente) doaram ao Instituto mochilas, panelas , roupas,  cantis, bonés , uniformes usados e utensílios fora de uso (do depósito de “inservíveis”), mas de grande serventia naquele sertão. Tempos depois, com a deposição do governador Mauro Borges, em 1964, e com o Estado sob a intervenção do coronel Meira Matos, denúncias anônimas levaram as Forças Armadas a deslocarem-se para Dianópolis à procura de “material subversivo” no Instituto. Os militares deram ordem de prisão a Hagahús, que se identificou após chegar ao aeroporto para receber e oferecer transporte “aos ilustres visitantes” que, na chegada, tinham demonstrado seu poderio com vôos rasantes sobre a cidade, metralhando uma casa em ruínas de um velho matadouro nas proximidades da pista de pouso.

 

         Ao chegarem ao Instituto com o fundador desta obra social sob escolta e na mira de metralhadoras, os militares foram cercados pelos servidores e mais de 100 crianças que, assustados e curiosos, deixaram às pressas os serviços nas roças, na escola e nas oficinas de trabalho. A maioria das crianças tinha idade entre 7 e 12 anos.

 

 Os visitantes ficaram decepcionados e, ao mesmo tempo, sensibilizados ao constatarem que o “material subversivo” - como as velhas fardas, mochilas e cantis privativos das Forças Armadas e descartados por estas - ali tinha se transformado em camisas, calças e calções que vestiam meninos pobres que os observava com dignidade. O mais constrangedor: o “uniforme de guerrilha” fora doado por militares de alta patente.

 

Desapontados, os então sisudos comandantes da frustrada expedição deixaram o Instituto convencidos de que, se ali existia alguma célula comunista, que outras surgissem para “incendiar” todo o país.

            

Fundação

 

“Muitas pessoas, na ata da fundação para formar o patrimônio inicial do Instituto, fizeram doações”, diz Hagahús. “No fim, estas foram dispensadas, já que havíamos adotado o princípio de que aquela obra não poderia depender da caridade do povo, visto que, em uma comunidade pequena e pobre, seria um golpe no moral dos nossos garotos saber que iriam depender da caridade alheia”, acrescentou ele em carta ao amigo e ilustre filho de Dianópolis, João Rodrigues Leal. Este, como honrado funcionário da Câmara dos Deputados, e advogado, muito ajudou Hagahús na manutenção daquelas centenas de crianças carentes, convencendo deputados da região e de outros Estados a destinarem recursos do Orçamento da União para a obra instalada nos sertões de Goiás e que chegou a ser referência nacional, no setor.

 

O Instituto de Menores de Dianópolis, abrigando crianças carentes, inclusive deficientes físicos, adolescentes e jovens de famílias pobres de toda a região, teve no trabalho dos seus internos – acompanhados por profissionais simples e competentes- o suporte para sua manutenção e construção de suas obras.  “Nossas crianças e jovens foram preparados para  viver dependendo do produto do seu esforço e educados para que fossem os melhores, porque não tinham pais endinheirados ou em posições de destaque para encaminhá-los na vida”, diz Hagahús. “Iriam  contar tão somente com o seu esforço e competência”. 

 

Enquanto muitos internatos de menores, no Brasil inteiro, são apontados como formadores de marginais, o Instituto de Dianópolis não protagonizou um só escândalo administrativo ou disciplinar em meio século de funcionamento. E ser aluno ou ex-aluno é um título apresentado com orgulho.

 

 

Coletivo

 

 

Com humildade, Hagahús sempre enfatiza que o Instituto de Menores não foi uma realização de uma só pessoa . “Foi o resultado de um trabalho coletivo irrigado com muito suor e dedicação por todos que ali trabalhavam. Inclusive dos próprios meninos que ajudaram a construí-lo e valorizaram aquilo que lhes pertencia e lhes pertence”, observa.

 

E com uma ponta de orgulho e muita emoção, Hagahús não esconde que teve “a melhor e mais acertada idéia de sua vida” quando, com  pouco mais de um ano após  iniciar as obras do Instituto, morando em um rancho de palha, já com 37 crianças, decidiu procurar uma esposa e  mãe para os seus “filhos adotivos” que aumentavam a cada dia. Em menos de 24 horas após a decisão, casava-se com a normalista  Josiniana Nepomuceno Wolney Araújo (Josa), filha de Aurélio Araújo e de Custodiana Nepomuceno Wolney Araújo (Diana/Dianinha), uma das Dianas que deu nome à cidade de Dianópolis.

 

 “Dona Josa” se converteu em Vida e Alma do Instituto. Assumiu as tarefas maiores da educação em sala de aula, elaborando planos de aula com os professores, incentivando grupos de teatro, de trabalho,   organizando a cozinha, almoxarifado, aprendendo com os livros e com as pessoas de sua confiança a produzir queijos, conservas, doces e a aproveitar tudo o que já sobrava nas hortas, nos pomares e nas  roças daquela obra social. A única filha mulher de D. Diana, sempre estudando fora de Dianópolis e acostumada ao conforto, se revelava com extremo zelo  em todas as tarefas que assumia naquele ermo de Goiás. Com o seu sorriso e alegria contagiantes, carregava em si uma luz própria. Promoções sociais e recepções às autoridades contavam com o seu toque de bom gosto.

 

 Como Hagahús, a sua mulher Josa tinha o dom da oratória, escrevia e falava muito bem, atributos que aperfeiçoou ao lado do marido já  político, nos  comícios improvisados e showmícios em  Goiás e Tocantins.

 

 

A mãe de Josa, Dona Diana ou Dianinha,  era filha única e  neta do coronel Joaquim Aires Cavalcanti Wolney, “o maior senhor feudal da região do nordeste de Goiás”, como atestam os historiadores. O coronel Wolney era o pai de Abílio Wolney, um dos políticos mais polêmicos da história de Goiás no início do século passado. Deputado estadual e federal, com forte influência também no interior da Bahia e Piauí, foi o  fundador do  primeiro grande  jornal do Estado – O Estado de Goyaz. Exímio redator, utilizou-se do  jornal para desencadear forte oposição ao governo de Ramos Caiado,  seu mais ferrenho opositor político. As conseqüências  foram trágicas: seu pai, o velho coronel Joaquim Wolney, foi assassinado por forças oficiais da Polícia de Goiás. Familiares e amigos tornaram-se  reféns do ódio dos  adversários políticos que detinham o poder  na capital. Protagonizaram a mais triste e trágica página da história goiana do início do Século XX (1917-1919), imortalizada no livro O Tronco, de Bernardo Élis, escritor goiano e membro da Academia Brasileira de Letras. (Recentemente, a obra foi levada  ao cinema pelo cineasta João Batista de Andrade, com o ator Antônio Fagundes fazendo o papel do coronel Joaquim Wolney). Na chacina de “O Tronco”, morre também o avô  materno de Hagahús,   Benedito Pinto de Cerqueira  Póvoa, “capitão da Guarda Nacional, rico fazendeiro da região e amigo dos Wolney”, registra   o pesquisador  e escritor tocantinense Osvaldo Póvoa.

 

União

 

Quase 40 anos depois da tragédia de O Tronco, Hagahús  enfrenta o descaso do então governo de Goiás e demais autoridades do Estado  para com o Instituto, “recusando até a doar a área de terras devolutas onde a obra se localizava”.  Em 10 anos (1953-1963) a soma de tudo o que o Estado havia fornecido ao Instituto mal dava para as despesas de uma semana da entidade, situação que só começa a mudar depois daquela obra social ter sido doada ao governo goiano, na gestão Mauro Borges.

Após entregar o Instituto às mãos do Estado (“por ironia do destino, o governo de Goiás, que durante tantos anos se negou a ajudar a instituição,  assumiu a responsabilidade completa de tudo”) Hagahús  foi  convidado pelo  governador Mauro Borges a  continuar dirigindo a obra que passaria,  no entanto,  a adotar  a política oficial no trato do menor. Ele recusou. E não poderia agir de outra forma quem idealizou, construiu e consolidou uma obra que nascera justamente da sua obsessão em colocar em prática as suas próprias idéias no trato do menor, discordando das propostas elaboradas, na sua quase totalidade, por pessoas que, na prática, jamais enfrentaram o problema e que se arvoravam no direito de ditar as regras.

O Instituto foi doado ao Estado sem nenhuma dívida, com víveres em estoque e com um patrimônio estimado em Cr$ 50 milhões (cinqüenta milhões de cruzeiros), valor duas vezes maior do que a soma de todos os recursos que a instituição recebera.

Preocupados em garantir a continuidade dos trabalhos daquela obra, pelo menos  com a manutenção do seu padrão educacional e de disciplina, o governo  e a comunidade se uniram no propósito de  a  direção do Instituto ficar com o também competente e preparado Dr.Wilson Araújo, formado em Odontologia,  que ali já vivia com a sua esposa Celeste, sendo bastante queridos pelos alunos e  por todos os  funcionários. Wilson era o irmão mais novo de Hagahús.

Tempos depois, Hagahús recebeu do governador Mauro Borges o  convite para dirigir o Centro Penitenciário de Goiás (Cepaigo). Ali poderia  colocar em prática as suas idéias  avançadas, e até revolucionárias, para a época, na administração de um presídio. Era como uma missão. E Hagahús aceitou.

 Mas veio o Golpe Militar de 1964 e  Mauro Borges, discordando dos rumos daquele movimento, tentou resistir a uma intervenção em Goiás. “Fizemos uma revolução para evitar uma ditadura da esquerda e não aceitaremos sem resistência, mesmo pacífica, que  uma ditadura de direita se instale em definitivo, a tortura seja a norma jurídica do País, governadores de Estados sejam desrespeitados em suas prerrogativas ao se negarem a ser interventores, ou apenas  áulicos ou bobos da corte, quer em palácios, quer em castelos”, explica o ex-governador e senador goiano no seu livro O golpe em Goiás. 

Diante das ameaças de invasão do Palácio das Esmeraldas pelas Forças do Exército, com a destituição do governador legitimamente eleito,  o jovem  e destemido diretor do Cepaigo não titubeou: reuniu os presos e  disse-lhes que se o Palácio fosse atacado, iria ajudar a defendê-lo. Ocupava um cargo de confiança e não iria trair quem nele confiou. Perguntou se alguém  ali queria acompanhá-lo:

- Conte com a gente, diretor. Aqui não tem ninguém preso porque errou o tiro, gritou um dos presos, em meio ao tumulto gerado pelo excesso de voluntários. 

Não houve a anunciada invasão do Palácio pelas forças revolucionárias, mas Hagahús acabou preso como subversivo, juntamente com outros políticos goianos. “De diretor-presidente do Cepaigo, passei à  condição de preso”,  ironiza Hagahús.

 

Destino

 

De volta à Dianópolis,  é posteriormente eleito prefeito da cidade e as suas boas relações com o então governador goiano Otávio Lage contribuem para o êxito de uma administração  inovadora, tida como exemplo em todo o Estado.

Com as trágicas lutas pelo Poder encetadas por sua família no sertão de Pernambuco – e pela família da sua mulher, Josiniana  Wolney Araújo,  em  Goiás – Hagahús aprendeu que política não se faz com rancor, que o adversário de hoje pode ser o aliado de amanhã, e que a gratidão é um dos mais profundos sentimentos do homem. Só nunca transigiu com a corrupção, como atestam todos seus atos e pronunciamentos durante toda a vida pública e privada.

Conciliador e decidido a suplantar animosidades políticas em uma região tão castigada por elas, convida para o controle das finanças do município um dos líderes e mentor intelectual do grupo adversário,  Coquelin Leal  Costa que, anos mais tarde, viria a ser o bisavô dos seus netos. (Iara, filha de Hagahús, casou-se com um neto de Coquelin, o advogado José Alencar Costa Aires). A mulher do candidato que havia disputado com ele a prefeitura, Dona Diran Rodrigues, é nomeada diretora de um dos grupos escolares construído por Hagahús e batizado por este com o nome daquele que foi, até o final da vida, o maior inimigo do seu pai na região, o coronel Abílio Wolney.

Hagahús  era incapaz de cultivar o ódio. Nas horas vagas, e, quando rapaz solteiro vivendo em Dianópolis,  se enfurnava na rica biblioteca  que Abílio Wolney mantinha em casa, trocando informações com o anfitrião  e recebendo deste toda atenção e carinho. Jamais Hagahús recebeu qualquer admoestação ou repreensão do seu pai por freqüentar a casa do seu “inimigo” coronel Abílio. E foi Abílio  Wolney que, em 1952,  sugeriu a Hagahús construir a sua obra social para menores  nas terras  da Fazenda Discreto, nas proximidades de Dianópolis, com abundância de água e até cachoeira, “que poderia ser usada para geração de energia”, dizia.

 A mulher com quem Hagahús se casou em 1955,  sobrinha-neta de Abílio Wolney,  era  tratada com mimo de filha pelo sogro, Luiz Padre (Zeca). Há dois anos, o juiz de Direito Abílio Wolney Neto  se casou com uma neta de Hagahús e bisneta de Zeca, a advogada e procuradora Luíza Helena.

O êxito de Hagahús à frente da prefeitura de Dianópolis  garantiu a eleição, como candidatos únicos, dos seus dois sucessores no cargo: César Póvoa e Hercy Rodrigues, os quais com ele trabalharam no Instituto. Por mais de uma década, sempre colaborando para o desenvolvimento da região, Hagahús não aceitou postos no executivo e nem disputou mandatos eletivos. Dedicou-se à família e conseguiu formar um bom patrimônio, cuidando também das propriedades rurais herdadas pelo casal.

 

Revide

 

Desafiado por adversários, aceita ser candidato às eleições de 1982, elegendo-se deputado estadual por duas vezes. Na Assembléia  Legislativa de Goiás teve uma atuação destacada e surpreendente, desde a sua estréia da tribuna, em 1983: o seu discurso, na posse dos novos deputados, foi  interrompido  29 vezes por aplausos, de acordo com  reportagem do jornal Diário da Manhã, de 2 de fevereiro daquele ano.

Tamanha empatia com o público vinha da linguagem fácil e fluente utilizada por ele nos seus pronunciamentos, escritos de próprio punho, assim como em todos os documentos e ofícios que ele mesmo redigia e   redige agilmente,  utilizando-se  de uma velha máquina  Remington,  hoje substituída pelo teclado do computador que também domina.

Hagahús teve a sua vida pública marcada pela defesa da moralidade administrativa, da ética e da transparência no trato com a coisa pública; pelo compromisso efetivo e afetivo com os setores mais carentes da população, pronto para atender, a qualquer hora, a todos que o procuravam, e tendo se tornado até mesmo o maior doador de sangue no município de Dianópolis, no intuito de salvar vidas no pequeno hospital local.

Sem vícios – exceto o trabalho – com  porte atlético e muita saúde, sempre gostou de aventuras: no período em que ficou sem mandato público, e quando praticamente não existiam estradas, regularmente fazia viagens com a família, sempre de carro, por todo o país e até por vários  países da América do Sul. Saindo de carro de Dianópolis(TO),chegou ao Uruguai, Paraguai e  Argentina, percorrendo fábricas do Sudeste e fazendas dos pampas gaúchos. No início da década de 70, passando por Mato Grosso, enfrentou com a família o “trem da morte” (à época, era quase a morte) para chegar, de carro, às Cordilheiras dos Andes, rumo às maravilhas das ruínas de Machu Pichu e Cuzco, no Peru, indo até a  Bolívia e  ao Chile. Foi um dos pioneiros nos acampamentos de pescaria do rio Araguaia. Mas era no rio do Peixe e no ribeirão do Inferno (nas imediações de Dianópolis) que exercia  o seu esporte favorito, a pesca de mergulho, com arpão, mais adequada à personalidade de quem sempre exigia resultados rápidos em tudo e  não admitia ficar à mercê da vontade ou dos caprichos de alguém, mesmo que fosse de  um peixe. E  nesses momentos de paz e de estreita convivência com os amigos, ou com a família, aflorava a figura do pai carinhoso, amoroso e dedicado; do companheiro solidário e sempre disposto; do bom contador de casos, de notícias do  país, do mundo e de fatos históricos, produto do seu “vício” pela leitura diária e constante  de jornais, livros, revistas e até de bulas de remédio, além da incrível capacidade de ouvir.

 

Citava, de memória, enormes trechos de livros como Os Sertões, de Euclides da Cunha, Guerra e Paz, de Tolstói, Dom Quixote, de Cervantes, dentre outros. Era o líder carismático e sensível, com seus gestos largos de bondade e humildade, sempre à frente de tudo, mas se portando  como se fosse o último dos últimos.

Pioneirismo

 

E Hagahús enfrentava todo tipo de desafio: de certa feita, para não esperar por muitos dias a volta do único caminhão que fazia as linhas  Barreiras – Dianópolis e Barreiras–Taguatinga, veio a pé, da Cabeceira de Pedra (perto de Taguatinga) para a sua cidade, percorrendo cerca de 130 km. Carregava nas costas, em embalagem hospitalar, os primeiros medicamentos da campanha contra a malária, para serem distribuídos gratuitamente a uma população que estava sendo atingida, de forma cruel,  pela doença. Tinha menos de 20 anos de idade.

No início da década de 50, foi  ao Rio de Janeiro em busca de  vacina contra a paralisia infantil, quando um surto da doença havia matado várias crianças em sua cidade. Conseguiu a vacina antes desta ser distribuída a qualquer outro município do interior do país. E arranjou  um avião da FAB para  o transporte do medicamento até Dianópolis.

 Era sempre o primeiro a chegar para socorrer carros e caminhões  que  quebravam ou atolavam pelas estradas  precárias  do antigo nordeste goiano. Colaborou para que o primeiro hospital da sua cidade, o São Vicente, fosse uma realidade; fez parte da primeira Diretoria da Cooperativa local, ajudou a organizar as primeiras creches e abrigo de velhos da cidade; trouxe o primeiro trator, o primeiro telefone e os primeiros médicos do município de Dianópolis, entre outros atos de pioneirismo e abnegação.

Muito lutou por medidas concretas de combate à corrupção, ao desvio de dinheiro e à malversação dos recursos públicos. “Para nossa vergonha, o roubo da coisa pública já é a forma mais segura de enriquecimento rápido e até prova de inteligência”, enfatizou em um dos seus inúmeros pronunciamentos sobre o assunto, quando deputado. “O trabalho deixou de ser uma fonte geradora de riquezas para se transformar em uma aventura de resultados duvidosos. Hoje, calo nas mãos são sinais de pobreza. Calos que enriquecem são aqueles produzidos na consciência”.

 Foi Hagahús também, em toda a sua longa vida pública, um combativo defensor dos agricultores e produtores rurais, das aposentadorias rurais, dos menores carentes, do direito à educação e à alimentação. Através de uma ação parlamentar eficiente, muito conseguiu para reduzir o fosso social que separava o Goiás desenvolvido da sua parte mais pobre,  carreando recursos para o que viria a ser hoje o promissor estado do Tocantins.

 Hábil articulador político, principalmente nos bastidores, Hagahús se uniu aos seus correligionários e amigos, então no PMDB de Goiás – deputados Brito Miranda e José Freire – para, com um trabalho dedicado,   vencer resistências contra a divisão do Estado. Foram, os três, também secretários de Estado do governador Íris Rezende, um amigo acima de interesses político-partidários.

 

Tocantins

 

Na primeira eleição para o governo do novo estado, na chapa do PMDB encabeçada por José Freire para governador,  Hagahús teve a sua candidatura lançada ao Senado. Naquela eleição, chegou a receber o apoio carinhoso e desprendido do filho do seu  amigo Milton, o  tricampeão de Fórmula l  Ayrton Senna, que, na infância, freqüentava  a fazenda do pai, próxima à cidade de Dianópolis. Porém, já na sua primeira eleição para o governo do Tocantins, o governador Siqueira Campos fez também os três senadores.

  Como deputado federal, Hagahús  foi um dos parlamentares do Tocantins que mais  garantiu recursos do Orçamento da União para o novo estado, principalmente  para Centros de Assistência à Crianças, construção de escolas, obras de infra-estrutura no aeroporto de Palmas, Hospital Geral,  reforma de unidades de saúde,  abastecimento de água etc.

Em 1993, foi o recordista na apresentação e aprovação de emendas ao Orçamento que beneficiaram o Tocantins, totalizando o maior volume de recursos destinados ao estado. 

 Na sua luta por mudanças na política de trato do menor, foi um dos poucos  deputados, à época, a  levantar a voz contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), comemorado como uma das maiores conquistas  do país. Para o deputado tocantinense, o ECA era “uma aberração” que levaria milhares de menores a serem utilizados pelo crime, “pois a lei que os cobre de direitos até os 18 anos irá metê-los na cadeia quando, adultos, repetirem os  mesmos delitos que se habituaram a praticar na adolescência e ficarem impunes”. Triste profecia do grande educador do Tocantins que, só agora, começa a ser reconhecida por lideranças de peso na cena política, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmim.

Como produtor rural, Hagahús sempre condenou as invasões de terra, embora defendesse uma reforma agrária responsável. Em 1991, apresentou o Projeto de Lei nº 1.917 proibindo “assentar, alienar e ceder a invasores, a qualquer título, imóveis rurais e urbanos”. Após anos de discussão, a sua proposta foi arquivada, mas acabou sendo encampada e adotada, “apenas com um palavreado difícil” - como lembra o autor -  pelo governo Fernando Henrique Cardoso com a edição da Medida Provisória nº 2.027-46, de 21 de dezembro de 2000. Em um dos seus artigos, esta MP proíbe o Estado de utilizar, para fins de reforma agrária, terra invadida, “imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo....”.

Com o término do seu mandato de deputado federal, Hagahús não escondia o desapontamento com a política, com a impunidade, com os privilégios, com os negócios escusos envolvendo dinheiro da nação e com o roubo da coisa pública que continuavam – e continuam – ocorrendo no país.  Passou anos cobrando uma ação conjunta dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) para combater a malversação do dinheiro público, sob pena de todos se desmoralizarem. “Há três Poderes e nenhum é modelo de perfeição. São independentes. Têm em comum a ineficiência, a corrupção e o tesouro para mantê-los”, dizia.

Após anos em cargos públicos, recebe hoje (agosto de 2003) uma única aposentadoria: de R$ 629,00, pelo INSS (menos de três  salários mínimos), o resultado das contribuições  feitas ao longo da vida sobre oito (8) salários mínimos. Mas tem orgulho de, como deputado estadual por Goiás, ter trabalhado  para acabar com a aposentadoria dos deputados goianos.

A política levou também quase todo o seu patrimônio, mas não a sua esperança de ver, um dia, um país melhor.

 

 

Registro

Muito poderia se falar sobre a trajetória do Homem, do Educador, do Cidadão e Político Hagahús Araújo. Mas esta publicação é apenas um registro jornalístico de alguns depoimentos, anotações  e  descrições feitas pelo  próprio biografado/autor, contendo fatos, pronunciamentos, documentos e realizações  que vêm marcando a sua vida, e  o testemunho de pessoas que estiveram  próximas a ele.

 Sob a responsabilidade da sua filha, a jornalista Iara Araújo Alencar Aires (que, em pouco mais de três meses, se debruçou sobre pesquisa, organização de material e texto final) - esta obra não tem a pretensão ou veleidade de dar a última palavra sobre qualquer assunto. Até porque existe a observação de que um livro de memórias e depoimentos é apenas um testemunho e, como tal, uma das muitas visões possíveis da realidade que atiça  curiosidades.

Sabemos que desde a mais alta Antigüidade clássica, principalmente desde Sócrates, Platão e Aristóteles, os assuntos políticos e as realizações dos homens e mulheres impressionam o gênero humano, sequioso de conhecê-los e investigá-los.  

 Os interessados em mais informações  ou em aprofundar questões aqui tratadas poderão procurar os livros do respeitado pesquisador e escritor tocantinense, Osvaldo Póvoa; de Nertan Macedo, Sinhô Pereira, o Comandante de Lampião; o livro O Tronco,  de Bernardo Élis; o  diário e relatos de Abílio Wolney condensados  por seus netos Abílio  e Voltaire; as detalhadas anotações da história política de Dianópolis feitas por Noélia Costa Araújo e a rica biblioteca e arquivos da Câmara dos Deputados.

Esta é apenas uma contribuição ao resgate da memória do nosso jovem estado, com vistas a fomentar e incentivar o surgimento de novas personalidades que haverão de contribuir para a consolidação do progresso e do desenvolvimento de um Tocantins mais justo e fraterno.

 

COMISSÃO ORGANIZADORA DOS EVENTOS ALUSIVOS ÀS COMEMORAÇÕES DOS 50 ANOS DO INSTITUTO DE MENORES DE DIANÓPOLIS E 75 ANOS DO SEU FUNDADOR, HAGAHÚS ARAÚJO, AO ENSEJO DO 119º ANIVERSÁRIO DA “CIDADE DAS DIANAS”.

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