O RETRATISTA DO DURO
Liberato Póvoa
02/07/2006
Era uma festa quando a gente ia tirar retrato: o banho severo com bucha de são-caetano, caco de telha pra tirar a tiririca dos pés, brilhantina nos cabelos, a roupinha de ver Deus. Não havia esses negócios de carteira de identidade, de título de eleitor, que menino é criatura sem vez com essa tal de responsabilidade.
Um retrato não era para qualquer ocasião: só quando alguém queria projetar no futuro um acontecimento de vulto. Em geral, reunia-se a família inteira, e para caberem todos na chapa, soía juntar um monte de gente - pais, filhos, noras, genros e netos, os menores no colo e nos braços dos maiores - para depois sair na revelação mais a expressão do esforço de cada um em acomodar-se de jeito a aparecerem na foto do que a tranqüilidade de uma família reunida.
O retratista era Antônio Leite, coletor e - nas horas de folga - o fotógrafo único da cidade. O privilégio do monopólio, entretanto, não lhe acrescentou melhoria alguma na sua técnica fotográfica, e sua máquina foi sempre a mesma: uma dessas antigas, de caixote, remendada: e encarapitada no tripé já meio bambo de tanto retratar a cara alheia.
Um retrato com Antônio Leite era demorado. Seu trabalho obedecia a um ritual já conhecido: ele se postava atrás do pano preto, focalizava, saía, consertava a gola do paletó, ajeitava o pescoço, endireitava a cabeça e às vezes até repuxava um sorriso no canto da boca do retratando e retomava ao refúgio do pano preto e quente de sua velha máquina. A operação era repetida cinco, dez vezes, deixando-o suado e nervoso, e quando batia a foto de seu "paciente" já cansado do vira-e-mexe, apareciam expressões angustiadas, mudanças de feições e não raro pelancas acrescentadas pelo trabalho fotográfico, numa espécie de cirurgia plástica às avessas. Lembro-me como hoje de Matias Circuncisão, estudante de Paranã, que, não obstante ser preto retinto, tinha no título eleitoral uma fotografia de branco; isto, sem se falar nos que saíam de olhos fechados e com expressões pouco recomendáveis para um documento.
Acho que Antônio Leite nem mesmo gostava de tirar retrato, pela sua nervosia nessas ocasiões. No dia da fundação da “União dos Trabalhadores de Dianópolis”, a diretoria quis perpetuar numa fotografia a memorável data, que abria as portas para a escola gratuita aos filhos dos trabalhadores, entre outras serventias. E buscaram Antônio Leite para, sob o sol causticante do quase meio-dia, documentar o evento. Uma multidão se aglomerou em frente à União, rodeando Adontino, famosíssimo sanfoneiro, que empunhava sua afinada harmônica. E enquanto o retratista, já suando, ia e vinha, consertando um aqui, outro acolá, Adontino ensaiava uns acordes, esticando o fole de sua respeitada concertina. O toque de Adontino já estava enervando Antônio Leite que, certa hora, saiu zangando de baixo do pano e bradou:
- Pare isso aí, rapaz! No retrato não vai sair música, não!
Quando as freiras construíram sua capela no Ginásio, fizeram um presépio tão bonito e expressivo, que resolveram tirar uma foto para enviar à Madre Geral da Congregação, na Espanha. E a superiora, madre Belém, pediu os préstimos de Antônio Leite, pai de quatro alunos ali do Ginásio: Toni: Berilo, Clélia e Dorival:
- Señor António, nosotros queríamos que usted retratase el Niño Jesús para enviarlo a la Madre General, en España. Está tan lindo, que merece uma foto!
Não havia dúvida. Era fácil, pois o objetivo era fixo, não precisava o puxa-encolhe de consertar roupa, corrigir expressões e outras inconveniências que só as pessoas têm; era só regular a máquina, colocá-la na posição certa e bater a foto.
E assim fez. Arranjou tijolos para calçar o tripé da máquina, chegou mais pra lá o foco, consertou a imagem na manjedoura (para não perder a mania de consertar), centralizou o altar e, com todo o respeito e cerimônia, bateu a foto, na presença das interessadas beatas, perfiladas assistindo à operação.
Três dias depois, as freiras mandaram buscar a fotografia para enviar à Madre Geral, lá na terra de Franco. Não houve jeito de encontrá-la, e Antônio Leite alegara que havia queimado, pois entrara luz na hora de revelar. E desistiram de bater outra foto.
Na verdade, a foto não havia queimado. Saíra perfeita, clara, inconfundível. Só que, no ajeita-ajeita de Antônio Leite, saíra o retrato do teto da capela, acima do altar. Nem o altar nem o Menino-Deus tiveram a ventura de ficar dentro do foco.
Agora, com o progresso, existem lá fotógrafos experientes, mas tivemos que passar pelo respeitado Augusto Gago. Mas isto é outra história.