MARIA GAGA

Liberato Póvoa

31/03/2010

 

 

 

De Formosa do Rio Preto, na Bahia, Maria Gaga chegou a Dianópolis há muitos anos, onde faleceu há uns vinte, se muito.

Embora tenha chegado lá com seus mais de sessentanos, Maria Gaga marcou época: gostava de festas, rezas, missas e de bate-papos, mas sua grande característica era a influência pelos estudos.  Andava, dia e noite, com uma cartilha ilustrada debaixo do sovaco, mostrando a um e a outro que "sabia ler".  Mas só "lia" o que tinha ilustração: onde havia uma casa, por exemplo, ela estufava o peito e "lia" com sua pronúncia que engolia "c" duro:

- ´Asa.

Onde não havia ilustração, ela saltava para onde havia: - Isso aí é uma ´adeira!

Num Sete de Setembro, arranjaram-lhe um uniforme igual ao dos meninos do grupo escolar, e na hora do desfile, lá estava Maria Gaga no meio dos meninos, toda pelintra e enfronhada na condição de "estudante".

Mas o entusiasmo dela não era só nisso: incutiram na cabeça dela que estudante tinha que fazer educação física.  E não demorou que lhe arranjassem - só de galhofa - um calção e uma blusa de malha, indumentária que foi recebida com entusiasmo.  E Maria Gaga meteu-se no uniforme de ginástica e saiu pela rua toda satisfeita, com um bando de moleques fazendo algazarra de suas pernas finas e pelancudas saindo das bordas do sumário traje, o que não a chateou de modo algum: aquilo lhe soava nos ouvidos como estímulo.  E tendo sido num dia chuvoso, sua roupa ficou ensopada.  E um resfriado violento foi o ônus de sua gloriosa exibição pública, o que quase a levou à cova.

Isto nada significou em termos de quebra de sua férrea vontade de aprender.  Um dia - só de malandragem - disseram que, mercê da idade, ela não podia continuar matriculada, e precisava de ordem expressa do Governador.  Maria não se constrangeu nem mediu dificuldades: arranjou jeito, pegou um ônibus e, ante o espanto do povo perguntando aonde ia, ela respondeu triunfante:

- Vô pra ´Oiânia falá" cum o ´Unvernadô!

E foi.  Mas no meio do caminho descobriram-na sem passagem dentro de um ônibus que não ia para Goiânia coisa nenhuma, e desceram-na ali na Fazenda São Sebastião, a 18 quilômetros daqui, de onde uns viajantes, condoídos de sua situação e informados de que ela precisava estar em Goiânia de qualquer jeito, carregaram-na pra lá, onde a soltaram.

Maria Gaga andou bestando, por lá, onde não conhecia ninguém e onde seguramente não sabia nem pra que rumo ficava o Palácio das Esmeraldas, que dirá falar com o Governador.  De lá, arranjou um jeito de vir até Brasília, onde ficou sete dias na Rodoviária, alimentando-se de pastéis e dormindo nos banheiros, onde lavava sua roupinha surrada.  Ao fluir de uma semana, um motorista da linha que traz gente de lá pra cá reconheceu-a e por caridade carregou-a de volta po Duro, aonde chegou contando mais maravilhas do que Marco Polo contara no seu retorno do Oriente.

Aproveitando-se do entusiasmo de Maria, um grupo de gente resolveu, mais uma vez, brincar com ela: alguém desenhou um pedaço de papel-cartão, pregou-lhe o retrato e diste que era seu título de eleitor.  Pois não é que no dia das eleições, Maria Gaga, não obstante analfabeta e com um título de mentira, teimou em exercer o direito de voto a qualquer custo, tendo o presidente da sessão eleitoral e os mesários suado para a dissuadirem e dela se livrarem.

Mulher opiniosa, teimosa que nem jegue quando chega na sombra, Maria Gaga não admitia que lhe duvidassem da palavra.  Muitas vezes, só de malandragem a molecada falava:

- Maria, andam dizendo aí que você não usa calçola.

Ela não titubeava: ali, no meio da rua, diante de quem quer que fosse, ela arribava a saia e mostrava que estava de calcinha.

Outras vezes, diziam que ela estava com o sutiã cheio de pano para aumentar o busto: com a mesma naturalidade, tirava os seios pelancudos para provar que era mentira do povo.

Maria Gaga, de tão boas recordações, irmã daquela Madalena, rezadeira de fama, morreu analfabeta como sempre viveu.  Não sei se foi sepultada com a inseparável cartilha cujas figuras "lia".  Mas seu último desejo foi respeitado: queria que seu caixão fosse de pano quadriculado, e não do preto convencional.

No dia de sua morte, Edilton, um dos maiores gozadores de Maria, fugiu da gaiatice e teve um momento de seriedade com a maestria de exímio artista da madeira, fez-lhe o caixão forrado de pano quadriculado para conduzi-la à derradeira morada, respeitando-lhe o último desejo.

       

Sair